sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Presentear é fazer um pedido

Imagine Calígula no vestíbulo de seu palácio esperando por seus presentes. Ou a Rainha Elizabeth I saltando de alegria ao receber, de seus súditos, polainas de tecido e prendedores. Citando estórias como essas, Lévi-Strauss traça as origens da entrega de presentes e seus papéis sociais, no Correio de agosto e setembro de 1955.



O costume de dar presentes de Ano Novo tem uma história simples e ao mesmo tempo complicada. Ela é simples o suficiente se meramente pensamos no significado geral da tradição em si mesmo e examinamos, como exemplo, o desejo japonês de Ano Novo "O-ni wa soto fuku wa uchi!" (Fora, todos os demônios! Deixem a boa sorte chegar!). Assim como o ano velho deve levar com ele o azar, o enriquecimento e a felicidade trazidos pela troca de presentes do dia de Ano Novo são vistos como um presságio, quase um encanto mágico, para garantir que o Ano Novo continuará sendo tão feliz como começou.

Deste ponto de vista, o ditado japonês é semelhante àqueles usado por Ovídio no primeiro livro dos Fastos, descrevendo as tradições romanas no festival de Jano. Hoje, isso se tornou o nosso primeiro de janeiro, embora, por um longo tempo, até mesmo em Roma o festival não coincidia com o início do Ano Novo. "Qual é o significado", pergunta o poeta a Jano, "das datas, dos figos secos e do mel de cor clara que são oferecidos em um barco branco?" "É um agouro", responde o Deus, "eles expressam o desejo de que os eventos futuros possam estar impregnados da mesma doçura…" Ovídio também relata que, no primeiro dia do ano, os comerciantes romanos tinham cuidado e abriam suas lojas por pouco tempo, a fim de fazerem algumas vendas como bons homens pelo resto do ano. Curiosamente, essa tradição tem sido mantida na língua francesa, em que a palavra para os presentes de Ano Novo é étrennes. Os comerciantes mudaram o significado do verbo étrenner, que significa fazer a primeira venda do dia.

Já é mais difícil traçar a origem da tradição de presentes de Ano Novo no mundo ocidental. Os druidas celtas tinham uma cerimônia que correspondia ao primeiro de janeiro. Eles cortavam visco, que era considerada como uma planta mágica com poderes protetores dos carvalhos, e distribuíam os pedaços ao povo. Daí o nome dado até recentemente, em certas partes da França, aos presentes de Ano Novo: guy-l’na- neuf, termo convertido muitas vezes a aguignette (do francês gui: "visco" e l’na-neuf: "Ano Novo").

Em Roma, durante a segunda metade de dezembro e o começo de janeiro, aconteciam festivais nos quais eram trocados presentes. Aqueles oferecidos em dezembro eram geralmente de dois tipos – velas de cera (que adaptamos para nossas árvores de Natal) e bonecas feitas de argila ou alguma substância comestível que eram dadas às crianças. Havia outros presentes também, descritos por Marcial em grande detalhe em suas epigramas. Cronistas romanos relataram que os patrícios recebiam presentes de seus dependentes plebeus e os Imperadores os recebiam de seus cidadãos. Calígula, por exemplo, recebia seus presentes pessoalmente e passava o dia inteiro em um vestíbulo de seu palácio destinado exatamente a esse propósito.

Pecúlio para Elizabete I da Inglaterra


Traços duais de suas origens – em costumes pagãos e ritos romanos – parecem ter sido preservados por presentes de Ano Novo. Por que teria a igreja, na Idade Média, tentado – em vão – aboli-los por considerá-los vestígios de barbárie? No entanto, àquela época, esses presentes não eram apenas tributos periódicos dos camponeses para seus senhores, sob a forma de capões, queijos frescos e frutas preservadas; ou oferendas simbólicas, como laranjas ou limões decorados com cravos, pendurados como talismãs sobre jarras de vinho para impedir que ele se tornasse amargo; ou noz moscada embrulhada em papel dourado. Eles eram parte de um esquema muito mais amplo de oferendas no qual, em certas partes da Europa, até mesmo o rebanho se beneficiava, sendo gratificado com fumigações de zimbro e molhado com urina.

Presentes de Ano Novo, como os conhecemos hoje, além de serem uma relíquia desses costumes populares, representam também a democratização de uma tradição aristocrática. No início da história moderna, os soberanos demandavam presentes de Ano Novo como forma de aumentar sua renda e criar mais uma oportunidade para que seus súditos provassem sua lealdade. Na França, Henrique III e o Duque de Berri tinham o hábito de receber presentes de Ano Novo. O que hoje chamaríamos de uma "edição de luxo' está mencionado sob o título de "presentes de Ano Novo" no inventário do Duque de Berri. Sabe-se também que Elizabete I da Inglaterra dependia dos presentes de Ano Novo para o seu pecúlio e manutenção de seu guarda-roupa. Os arcebispos e bispos costumavam dar a ela de dez a quarenta libras, enquanto ela recebia vestidos, saias, meias de seda, ligas, casacos, mantos e peles de sua nobreza. Presentes preciosos como urnas, potes de gengibre, flores de laranja e outros confeitos eram presenteados por seus médicos e boticários.

Durante o Renascimento europeu, os alfinetes de metal se tornaram a forma de presente favorita, uma vez que eles eram uma grande novidade – até o século XV, as mulheres usaram alfinetes de madeira para prender suas roupas. No que se refere aos cartões com figuras e textos ornamentais de Ano Novo, sabe-se que eles eram usados na Europa e no Japão. "Alguns com letras douradas expressam seu amor", disse um poeta inglês do século XVII. Na França, cartões ilustrados de Ano Novo estiveram na moda até a Revolução.

Uma interdependência espontaneamente aceita


Para entender por que a pratica de trocar presentes é tão persistente e tão generalizada, devemos olhar para além desses detalhes anedóticos e buscar o significado implícito desse costume. "A maneira de dar o presente é mais importante que o próprio presente", diz o ditado. E todos os povos, "selvagens" ou civilizados, parecem acreditar que é melhor receber objetos como presentes do que comprá-los, como se o ato de dar – ou receber – agregasse valor ao objeto. Os maoris da Nova Zelândia acreditavam que um poder mágico que eles chamavam de hau entrava no presente e criava um vínculo permanente entre aquele que dava o presente e aquele que o recebia. De maneira semelhante, o costume romano de oferecer presentes parece ter crescido a partir de uma crença. Ele se originou das oferendas de ramos verdes ao rei sabino Tácio, que compartilhava o poder real com Rômulo. Esses ramos eram tirados da madeira sagrada da Deusa Strenia e por isso eram chamados, em latim, strenae, de onde derivou a palavra em francês étrennes.

Strenia era a deusa da força. Tanto para os romanos quanto para os maoris, os presentes eram dotados de um poder especial originado do ato de presentear. De onde vinha essa poder? Por meio da troca de presentes, freqüentemente de valor simbólico, as pessoas dão expressão, de maneira exposta e visível, ao espírito interior de vida comunitária – uma interdependência espontaneamente aceita de viver uns com os outros. Não ironizemos, portanto, esse festival anual de celebração do Ano Novo, no qual flores e doces, gravatas e cartões ilustrados mudam de mãos. É uma ocasião em que todos os homens se dão conta de que a sociedade na qual eles vivem é baseada no princípio de dar e receber.

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