sexta-feira, 30 de outubro de 2009

O pais do rei com a língua pendurada

A cidade real de Gondar foi fundada pelo negus etíope Fasilides no século XVII. Vários de seus sucessores construíram seus palácios na mesma corte, formando um complexo de rara beleza. Esse sítio foi inscrito na Lista do Patrimônio Mundial da UNESCO, em 1979. Não muito longe dali, as ruínas de um castelo mais antigo deixado na solidão têm outra história para contar.




Uma figura alongada aparece no horizonte. Um homem caminha descalço. Ele se pareceria com uma escultura de Giacometti se não fosse pelo fato de carregar uma árvore sobre seus ombros. Mortos e bifurcados, os galhos da árvore estão retorcidos, como se sentissem dor. Seu tronco branco se contrasta com a pele escura do homem. Ele não pára para recuperar o fôlego e se move tão rápido que é preciso correr para acompanhá-lo. Onde ele está indo com tanta pressa, com uma árvore maior do que ele?

Estamos no planalto de Dankez no nordeste da Etiópia, não muito longe de Gondar, a bonita cidade imperial fundada pelo rei Fasilides, em 1632.

Dankez está a três horas de Gondar. De carro, são mais de 40 quilômetros de asfalto, depois 30 km de estrada de chão, seguidos de mais ou menos 8 km de pedras amarelas. Nesse ponto o veículo só consegue se mover devagar até que finalmente pára perto de uma árvore no meio do nada. Isso marca o começo de uma longa escalada a pé, primeiramente passando no meio de uma vila com algumas casas espalhadas (uma das quais certamente pertence ao homem que caminhava) e finalmente através de um vasto terreno baldio que culmina em uma colina. Aqui, a uma altitude de 2.700 metros, os contornos de duas ruínas se destacam sobre uma planície coberta de verdor, cercada por uma infinita cadeia de montanhas.

A curiosidade faz com que apertemos o passo. Em frente ao que já foi um exuberante palácio real, um agricultor trabalha sua terra. O arado, puxado por dois bois, se move para frente e para trás. Três períodos da história se conectam em um instante.

Esse era o castelo de Susenyos, um negus etíope que tomou o trono em 1607 e que, 20 anos depois, se arrependeu disso amargamente. “Ele acabou com a língua pendurada até os seus pés”, conta Aseged Tesfaye, um jovem formado em turismo e conhecedor das histórias oficiais e não-oficiais da região. “Deus o puniu por ter abandonado sua fé, uma vez que por 1.300 anos os reis da etiópia haviam sido ortodoxos”.

Auxiliado em sua subida ao poder pelo astuto Pedro Paez, chefe da missão jesuíta fundada na Etiópia, 40 anos antes, Susenyos se converteu ao catolicismo para ganhar o apoio de Portugal na luta contra os muçulmanos. Um século havia se passado desde que Ahmad al Ghazi, sultão de Harare, ao sudeste, havia iniciado uma guerra santa. O espírito do sultão, chamado de Ahmad Gragne (o canhoto) ainda assombra centenas de ruínas no país.

De acordo com “Uma História Geral da África” (volume V, UNESCO, 1999), porém, revoltas se proliferaram contra a nova igreja. O amado rei, que havia levado paz ao país, agora teve que submeter seus súditos a guerras sangrentas. Ele foi finalmente forçado a abdicar do poder em favor de seu filho, Fasilides.

Uma cidade que comece com "go"


“Após o ultimo massacre, em 1632, a igreja católica que ficava próxima ao castelo, onde 60 etíopes estudavam teologia, foi abandonada. Logo depois, Fasilides se estabeleceu em Gondar”, explica Aseged. O castelo e a igreja do rei com a língua pendurada caíram no esquecimento. Grama, mato e árvores crescem onde ele reinou um dia.

Por que Fasilides escolheu Gondar? Porque um dia, quando o rei Galawadewos estava bravamente resistindo às tropas de Ahmad, o Canhoto, um monge disse a ele: “Encontre uma cidade cujo nome comece com ‘go’. Quando a encontrar, você a proclamará capital de seu reino”. Após Gojam, Gouzara e Gorgora, vinha Gondar. E Dankez? “Dankez é também chamada de Gomenge,” declara Aseged, com um sorriso triunfante.

Quando Fasilides construiu seu palácio nessa cidade protegida por uma elevada cadeia de montanhas, provavelmente não suspeitou que oito dos seus sucessores residiriam no mesmo complexo por 100 anos. Cada um adicionou seu próprio palácio, competindo com os demais em beleza. “É isso que torna o complexo de sete hectares único no mundo”, diz Getnet, especialista do sítio inscrito na Lista do Patrimônio Mundial, em 1979.

Após apontar a influência portuguesa e indiana na arquitetura do palácio de Fasilides, Getnet explica como o palácio foi prejudicado pelo terremoto de 1704, saqueado pelos derviches do Mahdi sudanês, no século XIX, e bombardeado pelos britânicos, em 1941, em função da presença no local dos mais elevados oficiais da tropa de Mussolini. “Mas os maus reparos feitos pelos italianos durante a ocupação causaram tanto estrago quanto os bombardeios. Tivemos que fechá-lo ao público por 11 anos durante a restauração feita pela UNESCO. Ele foi reaberto há pouco mais de três anos. Você pode imaginar o estado deplorável em que estava o teto quando você vê o palácio Bacaffa, hoje”, diz Getnet, antes de mostrar o lar do último rei que governou nessa citadela, de 1721 a 1730.


O palácio da bela Rainha


Chamado de “O sem piedade”, Bacaffa parece, no entanto, um bon vivant em função do espaço que ele dedicou a festividades: seu salão de recepções é tão grande quanto o resto do palácio. Bacaffa é lembrado principalmente por ter se apaixonado por uma plebéia, uma jovem que ele supostamente conheceu enquanto passeava incógnito por seu reino. Como rainha Mentaweb (“como você é bonita”), a mulher governou o país com punho de ferro quando seu marido morreu. Sua beleza excepcional pode ser admirada em um mural encontrado no meio do Lago Tana, o maior da Etiópia (veja “Os tesouros intangíveis do Lago Tana”). Parece ser o único retrato da rainha, em vida.

O palácio de Mentaweb, em Gondar, foi transformado em um centro de cultura e artesanato. Aschalew Worku Tassew, chefe do departamento de Cultura e Turismo, demonstra orgulho: “Com a ajuda do Banco Mundial, mais de 130 pessoas já foram treinadas para diferentes trabalhos. Há, agora, sete associações de artesanato, coordenadas por uma federação, que começaram a exportar seus produtos para Frankfurt, na Alemanha. Em média, esse trabalho gera uma renda mensal de 3.000 birr (250 euros) por pessoa”.

Calmo e sério, Tassew também fala sobre as numerosas restaurações concluídas ou em andamento, em Gondar. Sua expressão, porém, se retrai quando ele fala de Dankez: “A condição das ruínas é alarmante. Nesse ritmo, o castelo de Susenyos será perdido em dois anos. Uma equipe de arqueólogos espanhóis produziu recentemente um relatório que pode ser utilizado para a restauração futura. Precisamos de ajuda internacional”.

Se nada for feito, a natureza pode superar as pedras e apagar para sempre os vestígios de um capítulo fascinante na história da Etiópia. E os versos inspirados em Gondar nos anos 30, escritos pelo etnólogo francês Michel Leiris, farão eco de forma ainda mais aguda na paisagem devastada:


“Cabanas de palha e pedras,
Entre ruínas caindo aos pedaços
Por dias e mais dias,
Eu estava apaixonado por uma mulher absínia
Clara como a palha,
Fria como a pedra,
Sua voz, tão pura, retorcia meus braços e pernas.
Ao vê-la,
Minha cabeça se esfacelava,
E meu coração desmoronava.
Como uma ruína.”

Jasmina Šopova

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