sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Matemática humana

A matemática humana escapará do desespero dos "grandes números" - os galhos aos quais as ciências sociais, perdidas num oceano de números, têm se abraçado sem esperança, diz Lévi-Strauss em artigo publicado no Boletim de Ciências Sociais, em 1954, que recomenda coordenar os métodos do pensamento. Trechos.





Quando consideramos a história da ciência, dá a impressão de que o homem, em um estágio inicial, percebeu qual seria o seu projeto de pesquisa e então, após ter se decidido por ele, levou centenas de anos para adquirir os meios para realizá-lo. Nos primeiros dias do pensamento científico, os filósofos gregos definiram os problemas da física por meio do átomo e hoje, 2 mil anos mais tarde e de um modo que eles provavelmente nunca imaginaram, estamos apenas começando a preencher o marco que eles delinearam há tanto tempo atrás. O mesmo pode ser dito da aplicação da matemática aos problemas da humanidade, uma vez que as especulações dos primeiros especialistas em geometria e aritmética se preocupavam com o homem muito mais do que com o mundo físico. Pitágoras tinha grande interesse no significado antropológico dos números e das figuras e Platão esteve significativamente ocupado com essas considerações.

Mais ou menos nos últimos dez anos, essas idéias, tão interessantes para o mundo antigo, tornaram-se novamente questões de interesse prático imediato. Pois, deve-se notar imediatamente que os avanços aos quais essa edição do Boletim Internacional das Ciências Sociais tenta dar uma modesta contribuição não estão, de maneira alguma, confinados às ciências sociais. Eles também devem ser vistos como parte das ciências do homem (se é que podemos fazer uma distinção entre os dois grupos de ciências). Eu iria mais além e diria que os mais sensacionais avanços talvez tenham sido vistos primeiramente nas ciências do homem . Possivelmente porque, à primeira vista, essas ciências parecem estar o mais distante de qualquer idéia de exatidão e mensuração. Mas também, provavelmente, porque o seu objeto de estudo essencialmente qualitativo tornou impossível que elas se colocassem a reboque da matemática tradicional, como têm feito as ciências sociais por muito tempo, e as forçou a se dirigirem, desde o início, a certas formas novas e ousadas do pensamento matemático. […]

As críticas às quais estão expostos os psicólogos experimentais do início deste século e os economistas e demógrafos tradicionais certamente não são que eles tenham dado muita atenção à matemática. Pelo contrário, pode-se criticá-los por não terem dado suficiente atenção a ela. Também por terem simplesmente tomado emprestado métodos quantitativos que, na própria matemática, são vistos como tradicionais e amplamente fora de moda. Não perceberam que uma nova escola de pensamento da matemática está emergindo e está, de fato, se expandindo enormemente no presente – uma escola de pensamento do que pode ser quase chamado de matemática qualitativa, mesmo que o termo possa parecer paradoxal, uma vez que tratamento rigoroso não mais significa recurso à mensuração. Essa nova matemática (que simplesmente apóia e expande sobre pensamentos especulativos anteriores) ensina-nos que o domínio da necessidade não é necessariamente o mesmo da quantidade.

Nem adição, nem multiplicação. O casamento pode ser expresso como equações





Essa distinção se tornou clara para o presente escritor em circunstâncias que se podem, talvez, relembrar nesse contexto. Quando, por volta de 1944, ele gradualmente se tornou convencido de que as regras do casamento e da descendência não eram fundamentalmente diferentes, como regras de comunicação, daquelas regras que prevalecem na lingüística e que, portanto, deveria ser possível lhes dar um tratamento rigoroso, os matemáticos consagrados a quem ele procurou o trataram com desdém. Disseram a ele que o casamento não poderia ser assimilado nem por meio da adição ou da multiplicação (muito menos pela subtração ou divisão) e que era conseqüentemente impossível expressá-lo em termos matemáticos.

Isso prosseguiu até o dia em que um dos líderes mais jovens dessa nova escola, tendo considerado o problema, explicou que, a fim de desenvolver uma teoria das regras do casamento, o matemático não teria a necessidade de reduzir o casamento a termos quantitativos; na realidade, ele não teria nem mesmo que saber o que era o casamento. Tudo o que ele pedia era, primeiramente, que fosse possível que os casamentos observados em uma sociedade particular fossem reduzidos a um número finito de categorias e, em seguida, que houvesse relações definidas entre as categorias (ex: deveria sempre haver a mesma relação entre a "categoria" do casamento dos pais e a "categoria" do casamento dos filhos). Daí em diante, todas as regras do casamento em uma dada sociedade podem ser expressos como equações e essas equações podem ser tratadas por meio de métodos racionais testados e confiáveis, enquanto a natureza intrínseca do fenômeno estudado – o casamento – não tem nada a ver com o problema e pode ser, de fato, completamente desconhecida.



Pequenos números, grandes mudanças




Um exemplo breve e simples como esse é uma boa ilustração da direção que a colaboração entre a matemática e as ciências do homem tomará agora. No passado, as grandes dificuldades surgiam da natureza qualitativa dos nossos estudos. Para serem tratados quantitativamente, era necessário manipulá-los ou simplificá-los excessivamente. Hoje, no entanto, há muitos ramos da matemática – teoria dos conjuntos, teoria dos grupos, topologia etc. – que estão preocupados com o estabelecimento de relações exatas entre classes de indivíduos distintos uns dos outros por meio de valores descontínuos. Essa mesma descontinuidade é uma das características essenciais dos conjuntos qualitativos na relação uns com os outros e foi a propriedade na qual a sua suposta "incomensurabilidade" e "inexpressabilidade" consistia. (continua)
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"A UNESCO prestaria um serviço de valor incalculável às ciências sociais se ela se concentrasse no desenvolvimento de um curso teórico em ciências sociais que estabelecesse o equilíbrio apropriado entre a tradicional contribuição dessas ciências e as novas ofertas revolucionárias da pesquisa e da cultura matemática."
As novas tendências matemáticas estão determinadas a quebrar com a falta de esperança dos "grandes números" – essa balsa de náufragos na qual agonizam as ciências sociais, perdidas em um oceano de números; seu objeto último já não é mais inserir movimentos progressivos e contínuos em gráficos monótonos. O campo com o qual se preocupa não é aquele das variações infinitesimais reveladas pela análise de um vasto acúmulo de dados. O panorama que ela apresenta é, na verdade, aquele resultante do estudo dos números pequenos e das grandes mudanças trazidas pela transição de um número ao outro. Se o exemplo permite, eu diria que estamos menos preocupados com as conseqüências teóricas de um aumento de 10 % na população de um país com 50 milhões de habitantes do que com as mudanças de estrutura que ocorrem quando um "lar de dois indivíduos" se torna um "lar de três indivíduos".

O estudo das possibilidades e limitações ligadas ao número de membros de grupos muito pequenos (os quais, desse ponto de vista, permanecem "muito pequenos" até mesmo se os próprios membros são grupos de milhões de indivíduos cada um) carrega, sem dúvida alguma, uma antiga tradição, uma vez que os primeiros filósofos gregos, os sábios da China e da Índia e os pensadores dos povos que viviam na África e na América antes dos tempos coloniais e antes de Cristóvão Colombo estavam muito interessados com a significância e com as propriedades peculiares dos números. A civilização indo-européia, por exemplo, tinha predileção pelo número "três", enquanto os africanos e os ameríndios tinham uma inclinação pelo número "quatro". Essas preferências obedecem a propriedades lógico-matemáticas exatas.[…]


Pense tanto matematicamente quanto sociologicamente


A grande maioria dos cientistas sociais tem, mesmo agora, uma formação clássica ou empírica. Poucos deles possuem treinamento matemático e, mesmo se têm, ele é freqüentemente muito elementar e muito conservador. As novas oportunidades oferecidas às ciências sociais por certos aspectos do pensamento matemático contemporâneo conseqüentemente demandará um esforço considerável de adaptação por parte dos cientistas sociais. Um bom exemplo do que pode ser feito nessa direção foi recentemente apresentado pelo Conselho de Ciências Sociais dos Estados Unidos, que, durante o verão de 1953, organizou um seminário matemático para cientistas sociais na Universidade de Dartmouth, em New Hampshire. Seis matemáticos deram um curso de oito semanas para 42 pessoas sobre os princípios da teoria dos conjuntos, a teoria dos grupos e o cálculo de probabilidades.

Espera-se que experimentos desse tipo sejam feitos com maior freqüência e alcance. […] Desse ponto de vista, a UNESCO tem uma missão muito importante a desempenhar. A necessidade de revisão das ementas é sentida em todos os países; mas os professores e administradores, que em sua maior parte tiveram uma formação tradicional, estão mal-equipados intelectualmente para planejar e realizar tal revisão. Parece particularmente desejável uma ação internacional pelos poucos especialistas de todo o mundo que são hoje capazes de pensar tão matematicamente quanto sociologicamente, em termos da nova situação. A UNESCO prestaria um serviço de valor incalculável às ciências sociais se ela se concentrasse no desenvolvimento de um curso teórico em ciências sociais que estabelecesse o equilíbrio apropriado entre a tradicional contribuição dessas ciências e as novas ofertas revolucionárias da pesquisa e da cultura matemática.

No entanto, seria errôneo supor que o problema consiste simplesmente em reorganizar a instrução a fim de permitir que os cientistas sociais possam se beneficiar dos últimos avanços no pensamento matemático. Não é simplesmente ou principalmente uma questão de se apropriar dos métodos e resultados do "mercado" matemático. As necessidades especiais das ciências sociais e as características diferenciadas do seu sujeito de estudo demandam um esforço especial de adaptação e invenção da parte dos matemáticos.



Coordenação dos métodos de pensamento





A colaboração de mão única não é suficiente. Por um lado, a matemática ajudará a fazer progressos nas ciências sociais, mas, por outro lado, essas ciências abrirão novas possibilidades para a matemática. Visto sob esse ângulo, uma nova forma de matemática necessita ser desenvolvida. Essa fertilização mútua tem sido, durante os últimos dois anos, o principal objeto do Seminário sobre o Uso da Matemática nas Ciências Humanas e Sociais, organizado pela Casa da UNESCO em 1953 e 1954, sob os auspícios do Conselho Internacional das Ciências Sociais. Nesse seminário participaram matemáticos, físicos e biólogos (pelo lado das ciências naturais) e economistas, sociólogos, historiadores, lingüistas, antropólogos e psicanalistas (do lado das ciências humanas e sociais). É ainda cedo para avaliar os resultados desse experimento ousado, mas qualquer que sejam as limitações que ele possa ter tido – o que é esperado nesse período de tentativa e erro –, todos nele envolvidos são unânimes em dizer que ganharam muito com o seminário.

Em sua vida interior, o homem sofre tanto de "comportamentos intelectuais impermeáveis" quanto ele sofre, em sua vida comunitária, com a desconfiança e hostilidade entre os diferentes grupos. Ao trabalharmos pela coordenação dos métodos de pensamento, que não podem ficar para sempre desconectados nas várias esferas do conhecimento, estamos ajudando na busca por uma harmonia interna a qual pode ser, em um nível diferente daquele com o qual a UNESCO se preocupa, mas não com menos importância, a condição real para a sabedoria e a paz.

Trechos da "Introdução" ao Boletim Internacional das Ciências Sociais Vol. VI, n° 4, 1954. (página anterior)

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