Leilão fracassado de exemplares autografados traz à tona na
Alemanha debate sobre proibição do panfleto-biografia do ditador nazista. DW
entrevista especialista sobre a suposta fascinação de um texto pouco conhecido.
Minha luta (Mein
Kampf) de Adolf Hitler é o livro tabu por definição. Banido na Alemanha desde o
fim da Segunda Guerra Mundial, no último dia de 2015 ele cai em domínio público
na Europa. Assim, estaria aberto o caminho para sua reedição, comentada ou não.
No entanto, órgãos governamentais querem manter a proibição,
alegando tratar-se de um panfleto de incitação racista. Apenas recentemente o
Instituto de História Contemporânea (IfZ, na sigla em alemão) conseguiu impor
definitivamente sua intenção de lançar uma edição histórico-crítica.
O misto de panfleto e autobiografia que o futuro ditador
nazista lançou em dois volumes, em 1925 e 1926, voltou agora às manchetes.
Juntamente com outros itens hitleristas, uma casa de leilões de Los Angeles
anunciava para esta quinta-feira (26/03) a venda online de dois volumes da
primeira edição, assinados por Hitler e presenteados a um dos primeiros
seguidores de seu Partido Nacional-Socialista Alemão dos Trabalhadores.
A casa de leilões classificava o lance inicial de 35 mil
dólares como "um pouco cauteloso", considerando-se que um comprador
pagou 64.850 dólares por um conjunto semelhante em 2014. No entanto, a
transação não se concretizou, pois a "pechincha" não encontrou nenhum
comprador.
A Deutsche Welle entrevistou o sociólogo Horst Pöttker,
ex-docente de jornalismo da Universidade de Dortmund e professor emérito da
Universidade de Hamburgo. Para o projeto Zeitungszeugen 1933-1945, de
reprodução de matérias jornalísticas da era nazista, ele comentou trechos de
Mein Kampf, mas sua publicação, planejada para janeiro de 2012, foi sustada.
DW: Uma edição autografada do Minha luta foi leiloada em Los
Angeles, com lance inicial de 35 mil dólares. O que o senhor acha de leilões
desse tipo?
Horst Pöttker: Isso é um comércio de relíquias obsceno. Sou
totalmente contra, mas também sei, claro, que no contexto da livre economia é
impossível proibir algo assim.
O que aparentemente se pode proibir é a publicação na
Alemanha do panfleto agitador de Hitler. A partir de 1º de janeiro de 2016,
caem os seus direitos autorais. Ainda assim, em meados do ano passado, as
secretarias estaduais de Justiça alemãs decidiram seguir interditando a
divulgação do livro. O que o senhor pensa dessa decisão?
É preciso tomar cuidado com a palavra "proibir".
Não é proibido ler esse livro: pode-se vê-lo em bibliotecas. Tampouco existe
uma lei penal proibindo sua reedição. Mas há direitos autorais, e eles ficam no
nome do autor da obra por 70 anos [após sua morte].
Depois do fim da Segunda Guerra Mundial, os Aliados
transferiram os direitos de Mein Kampf da Editora Eher para o estado da
Baviera. Dentro de uns nove meses, o livro entra em domínio público. Se os
secretários de Justiça deliberaram proibir a reedição em alemão e na Alemanha,
eles precisam fazer uma lei que proíba a difusão. Até agora, não vi isso acontecer.
Os secretários da Justiça dizem que o crime de incitação
popular basta para impedir uma publicação. O senhor concorda que o livro contém
incitação?
Não concordo, pois, na minha opinião, esse livro é um
documento histórico. Não é um texto político atual. Podem-se declarar
anticonstitucionais textos redigidos após a entrada em vigor da Constituição: o
que foi feito antes são documentos históricos.
De resto, não considero inteiramente procedente o termo
"panfleto de incitação popular", pois, em parte, ele não é tão
incitador assim. Conhecer esse livro é útil para entender por que tanta gente
seguiu o nazismo nos anos 1930 e também 1920.
O então presidente Theodor Heuss já dizia na década de 50
que se devia publicá-lo, para que os alemães soubessem como os nazistas
pensavam e de que crimes eram capazes.
Qual é o conteúdo de Minha luta?
A argumentação que permeia o livro é a ideologia racial. Em
primeira linha, trata-se da luta entre as "raças" germânica e
judaica. A "raça judia" é, para Hitler, o principal inimigo, que cabe
combater e exterminar, em nome da autopreservação.
Portanto, já em 1925, quando ele foi lançado, se podia saber
que os nazistas planejavam exterminar a "raça judia". Até o fim da
guerra, foram impressos 13 milhões de exemplares. O argumento de muitos
alemães, depois de 1945, de que as pessoas não sabiam de nada, é, assim,
improcedente.
O Instituto de História Contemporânea de Munique trabalha há
anos numa edição comentada, que, depois de muito vaivém, possivelmente vai sair
no início de 2016. Não seria esta a solução certa, impedir edições não
comentadas, mas permitir as comentadas?
Não precisamos de uma edição histórico-crítica – muito menos
de uma que custa tanta verba pública –, porque não temos necessidade de saber o
que o autor Adolf Hitler queria dizer exatamente. "Histórico-crítico"
também significa, afinal, compreender diferentes camadas do desenvolvimento do
texto. Será que filologia textual é realmente importante, aqui? Na minha
opinião, é importante um público amplo finalmente ficar conhecendo o conteúdo
desse livro e desenvolver uma avaliação realista, criticamente fundamentada.
O senhor mesmo trabalhou há alguns anos num comentário de
Mein Kampf para o projeto Zeitungszeugen, antes que ele fosse sustado pela
secretaria de Finanças da Baviera. Qual era a intenção do Zeitungszeugen, ao
publicar o panfleto do ditador e genocida?
Deutschland Presse Zeitungszeugen Hitlers Mein
Kampf am Zeitungskiosk
Anúncio de "Zeitungszeugen": "Em breve: o
livro que ninguém deve ler. Leia-o"
Nós havíamos planejado três brochuras com excertos de Minha
luta, comentados por mim. Minha meta era esclarecer a respeito desse livro e
responder à pergunta: por que tantos alemães o compraram e leram. E por que
seguiram o que constava dele. Eu queria examinar os argumentos aparentemente
atraentes de Hitler, buscando sua pertinência, e mostrar, justamente, que eles
não são pertinentes, por só serem plausíveis no contexto de uma ideologia
brutalmente racista.
Eu temo que, no momento em que esse livro seja lançado, ele
adquira uma certa atratividade, por todos estarem munidos da falsa noção de que
se trata exclusivamente de um panfleto grosseiro, onde o mal se anuncia
imediatamente, por toda parte. Não se devia tê-lo mantido tabu por tanto tempo.
Eu queria combater isso com a publicação dos trechos e das explicações.
Em outros países, a difusão de Mein Kampf não é, em
absoluto, problemática – veja-se o leilão de uma edição autografada nos Estados
Unidos. Por que os alemães têm tantos problemas com o livro de Hitler?
Impedir que esse livro seja lido por muitos na Alemanha,
fazendo justamente uso do direito autoral, é um absurdo. Isso quase lança a
tese de que os alemães são mais seduzíveis do que outras nações. Eu, realmente,
torço para que os nossos políticos não sejam dessa opinião, mas sim que – 70
anos após o fim desse terrível regime – confiem que os alemães possuem
maturidade suficiente.
Pode-se comprar o livro por todo o mundo em traduções; com
as tecnologias digitais é até bem fácil ter acesso a elas. Não percebo o que se
pretende com a planejada proibição. Quem vem da [extrema] direita, consegue o
livro, de qualquer jeito.
Autoria Sarah Judith Hoffmann (av)
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