Desde os primórdios da humanidade a luta pela dignidade do
trabalho tem sido prometeica. No Brasil, se o trabalho indígena foi um
exercício comunal, a saga europeia do colonizador nos impôs o trabalho
compulsório, inicialmente dos aborígenes e depois dos africanos.
Com a abolição da escravatura, o imigrante branco foi
escolhido para o mundo industrial, excluindo-se os negros que povoavam a produção
rural. E o trabalho negro, especialmente o das mulheres, foi empurrado para o
emprego doméstico, perpetuando a herança servil da nova casa-grande urbana.
Foi a partir de 1930 que a modernização capitalista do país
obrigou, depois de décadas de lutas operárias, a se pensar em uma legislação
social protetora do trabalho.
De modo conflituoso e contraditório, nasceu a CLT, que tinha
a aparência da dádiva, mas resultava de uma real impulsão operária.
Converteu-se na verdadeira constituição do trabalho no Brasil, ainda que seus
direitos excluíssem os assalariados do campo.
Hoje estamos à frente de um novo vilipêndio em relação aos
direitos do trabalho, cujo significado e consequência têm requintes comparáveis
à escravidão, ainda que em sua variante moderna. Descontentes com os direitos
conquistados pela classe trabalhadora, neste contexto de crise, os capitais
exigem a terceirização total, conforme consta do projeto de lei nº 4.330/04,
agora rebatizado no Senado como projeto de lei da Câmara nº 30/2015.
Em nome da falaciosa "melhoria da qualidade do produto
ou da prestação de serviço", o projeto elimina de uma só vez, a limitada
disjuntiva existente entre atividades-meio e atividade-fim.
Uma empresa poderá recorrer a outra, para contratar
trabalhadores, eliminando a relação direta entre empregador e assalariado. Como
na escravidão. Neste passe de mágica, todas as modalidades de trabalho poderão
ser terceirizadas. Até os pilotos de aeronaves.
Com um Congresso lépido e faceiro nas práticas negociais,
impulsionado pela lógica volátil do capital financeiro, uma nova servidão
involuntária está sendo urdida.
Dinheiro gerando mais dinheiro, na ponta fictícia do sistema
financeirizado global e respaldado em uma miríade de formas pretéritas de
trabalho (precarizado, flexibilizado, terceirizado, informalizado,
"cooperado", escravo e semiescravo) na base da produção.
As falácias presentes no projeto de lei são todas
conhecidas: em vez de criar empregos, ela desemprega, uma vez que os
terceirizados trabalham mais tempo e ainda percebendo menores salários.
Em vez de "qualificar" e "especializar",
temos o contrário, pois são nas atividades terceirizadas que se ampliam ainda
mais os acidentes, as mutilações, os adoecimentos, os assédios, as mortes e os
suicídios. Basta lembrar a indústria petrolífera e de energia elétrica.
Assim, o projeto de lei da Câmara não quer regulamentar os
terceirizados, mas de fato desregulamentar o trabalho em geral. Se o quisesse,
era só alterar seu o artigo 2º, eliminando a possibilidade de terceirização em
"qualquer de suas atividades" e mantendo a regulamentação dos
terceirizados que atuam nas atividades-meio. Simples assim, mas isso desmascara
o real objetivo do famigerado projeto de lei.
O que motiva os seus defensores é de fato a redução
salarial, de custos e de direitos da totalidade da classe trabalhadora,
pejotizando ainda mais as relações de trabalho.
Já está mais do que hora de dizer –em alto e bom som– que a
terceirização avilta o trabalho em todas as suas formas e deve, por essa razão,
ser combatida por todos.
É preciso acrescentar, porém, que o que está na pauta hoje é
o risco iminente da terceirização total, inclusive das atividades-fim, que deve
ser obstada para que não se gere ainda mais trabalho aviltado.
RICARDO ANTUNES, 62, é professor titular de sociologia da
Unicamp. É autor de "Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil III"
(Boitempo) e de "The Meanings of Work" (os sentidos do trabalho), publicado
na Índia pela editora Aakar Books
http://www1.folha.uol.com.br/…/1637855-ricardo-antunes-a-se…
Nenhum comentário:
Postar um comentário