Publicado em Sábado, 16 Abril 2016 09:23
Jean Keiji
Uema*
O processo de impeachment está previsto constitucionalmente
para que se responsabilize, com a perda do mandato mais inabilitação para
exercer função pública por oito anos, o Presidente da República, assim como
outras altas autoridades políticas e judiciais, em face do cometimento de algum
ato caracterizado como “crime de responsabilidade”, assim definido em lei.
Trata-se de um juízo exarado pelo Congresso Nacional sobre a
responsabilidade política do Presidente da República. Bem por isso o Ministro
Celso de Mello ressalta que, mesmo comprovada a “culpa jurídica”, ainda assim
pode haver um juízo político de absolvição no Congresso.
Isso não quer dizer, contudo, que esse julgamento político
não tenha que observar balizas jurídicas, notadamente aquelas definidas na
Constituição. Isso fica claro, por exemplo, com a obediência obrigatória às
regras processuais constitucionais que exigem dois terços dos votos tanto para
a admissão da acusação pela Câmara (caput do art. 86), como para o julgamento
pelo Senado (parágrafo único do art. 52). Outras regras constitucionais já
exigiram pronunciamentos do Supremo sobre a sua mais adequada aplicação, como
aquelas relativas ao papel de cada Casa do Congresso no processo de impeachment
(julgamento da ADPF 378).
Desse modo, fica claro que os artigos constitucionais sobre
o processo de impeachment possuem carga normativa suficiente para pautar a
atuação dos parlamentares, servindo-lhes como limite, inclusive; ao tempo que
tornam sindicáveis judicialmente os atos legislativos na questão.
Assim, surge uma questão central colocada no caso presente:
para que seja juridicamente possível do ponto de vista constitucional, o
julgamento político feito pelo Congresso deve ser precedido de comprovaçãoda
prática e da ocorrência de um ato ilegal que se caracterize como crime de
responsabilidade, conforme definido na Constituição (art. 85) e na Lei (Lei nº
1.079/50).
Esse comando constitucional é explícito no art. 85. Pela sua
importância cabe a transcrição:
“Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do
Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e,
especialmente, contra:
I - a existência da União;
II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder
Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da
Federação;
III - o exercício dos direitos políticos, individuais e
sociais;
IV - a segurança interna do País;
V - a probidade na administração;
VI - a lei orçamentária;
VII - o cumprimento das leis e das decisões judiciais.
Parágrafo único. Esses crimes serão definidos em lei
especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento.”
Essa é a advertência da Constituição: o Presidente da
República, eleito diretamente pelo voto popular (cláusula pétrea), poderá ser
submetido ao processo de impeachment, o que poderá inclusive resultar na perda
de seu cargo, se, e somente se, cometerem ato tipificado como crime de
responsabilidade, assim definidos na lei ordinária especial.
A prática do crime de responsabilidade, pressuposto para o
julgamento político que cabe ao Senado Federal (art. 86 da CF), não ficou
demonstrada no relatório da comissão especial instaurada para apurar se a
denúncia aceita pelo Presidente da Câmara dos Deputados contra a Presidente da
República poderia prosseguir.
Essa é a ressalva que está sendo feita para evidenciar a
natureza antijurídica da acusação e do relatório apresentado pelo relator na
Comissão especial, mesmo sem considerar aquilo que ilegalmente foi acrescentado
pelo Relator em seu relatório, conforme decidiu na data de ontem o Supremo
Tribunal Federal em julgamento de mandados de segurança (34.130 e 34.131).
Os fatos admitidos para embasar a acusação – as chamadas
pedaladas fiscais referentes a subvenções referentes ao Plano Safra e a edição
de decretos de crédito suplementares – não configuram crime de
responsabilidade. Essa tipificação não restou demonstrada. Pelo contrário, tem
sido afastada em diversos pareceres e posicionamentos de juristas.
Em verdade, a abertura dos créditos suplementares ocorreu em
estrita observância às regras que disciplinam a matéria, notadamente o art.
167, inciso V, da Constituição e o art. 4º da Lei nº 13.115/2005.
Advirta-se, ainda, que a edição dos decretos se sustenta em
pareceres técnicos e jurídicos que os recomendavam, bem como configuram prática
consolidada da Administração em governos anteriores e em outros Estados da federação,
além de encontrar guarida também na jurisprudência do Tribunal de Contas da
União que vigorou até o entendimento firmado em outubro de 2015, pois a mudança
da interpretação do TCU se deu apenas no Acórdão 2.461, posteriormente à edição
dos decretos em julho e agosto de 2015.
Uma questão nesse ponto é central. A existência do fato
típico e a formação da culpa jurídica, ou pelo menos a indicação clara da
ocorrência desses pressupostos constitucionais, deveriam estar pelo menos
evidenciadas na admissibilidade da acusação. Sem essas evidências, a abertura
do procedimento, como ocorreu no caso, caracteriza desvio de finalidade e abuso
de poder pela explícita falta de justa causa.
Cabe relembrar que no caso do impeachment do Collor a
autorização do processo pela Câmara e o julgamento do processo pelo Senado
foram precedidos de uma Comissão Parlamentar de Inquérito que apurou e colheu
provas: cheques fantasmas do esquema PC Farias pagavam despesas pessoais do
Presidente da República. No presente, não há sequer procedimento
administrativo, parlamentar ou judicial que evidencie ou indique a prática e a
ocorrência do necessário crime de responsabilidade, o que torna ainda mais
difícil qualquer discussão sobre o dolo da Presidente.
Ao contrário, as contas de 2015 sequer foram julgadas pelo
órgão competente – o TCU. E como se disse, os atos foram aprovados e
recomendados por diversos pareceres administrativos que gozam da presunção de
legitimidade. Pergunta-se: e se esses atos forem aprovados? Restitui-se um mandato
porventura inconstitucionalmente cassado?
Daí decorre a temeridade de se permitir um julgamento
político sobre fatos que juridicamente não restaram caracterizados como crime
de responsabilidade. Isso, obviamente, macula e vicia o processo, tornando-o
arbitrário do ponto de vista constitucional.
(*) Jean Keiji Uema – Analista Jurídica do Supremo Tribunal
Federal, Mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP.
Fpnte : DIAP
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