quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Insidiosa moléstia



 SÃO PAULO - Nas últimas décadas, fomos convencidos pelos médicos de que a melhor forma de evitar um câncer fatal era, além de hábitos de vida saudáveis, a detecção precoce. E não é que agora aparecem estudos, como o publicado ontem em Saúde, que questionam o conceito.
A questão é complexa e polêmica. Em nossas mentes essencialistas, a "insidiosa moléstia", como se dizia antigamente (evitávamos até chamá-la pelo nome), ainda é sinônimo de doença mortal. Em nível celular, porém, o câncer é um processo biológico com ampla variedade de desfechos naturais. Há desde tumores agressivos até os inertes, passando pelos de evolução lenta, cujos portadores morrem de outras causas antes de a doença manifestar-se. Como o significado mais letal é o que prevalece, ao menor sinal de malignidade, já se recomenda a remoção do tecido e o tratamento.
A estratégia inegavelmente salva vidas, mas há um preço a pagar, como explica H. Gilbert Welch, autor de vários livros e artigos a respeito do sobrediagnóstico de câncer.
Nas contas de Welch, para cada vida que salvamos submetendo mulheres de 50 anos a mamografia, produzimos os seguintes efeitos adversos: de 2 a 10 recebem tratamento sem necessidade; de 5 a 15 sabem da doença antecipadamente, mas o prognóstico não muda; de 200 a 500 experimentam "alarme falso".
Com o aumento dos "check-ups" e exames, altas taxas de sobrediagnóstico são encontradas para câncer de mama, pulmão, próstata, tireoide e melanoma. Para Welch, o sobrediagnóstico transforma gente saudável em pacientes que passam por intervenções agressivas (e pagam por elas) sem motivo.
Para complicar mais, no instante do resultado positivo, é impossível dizer se o paciente é aquele que se salvará graças ao diagnóstico precoce ou o que se submeterá a tratamento ocioso. Apesar dos avanços, a medicina ainda exige que façamos apostas, nem sempre explícitas.

HÉLIO SCHWARTSMAN -  26 Oct 2011

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