quarta-feira, 20 de julho de 2016

Memórias do Subsolo

 “[..] apenas levei até o extremo, em minha vida, aquilo que não ousaste levar até a metade sequer.”
Mesmo agora, passados tantos anos, tudo isso me vem à memória de modo demasiado mau. Muita coisa lembro agora realmente como um mal, mas… não será melhor encerrar aqui as “Memórias”? Parece-me que cometi um erro começando a escrevê-las. Pelo menos, senti vergonha todo o tempo em que escrevi esta novela: é que isto não é mais literatura, mas um castigo correcional. De fato, contar, por exemplo, longas novelas sobre como eu fiz fracassar a minha vida por meio do apodrecimento moral a um canto, da insuficiência do ambiente, desacostumando-me de tudo o que é vivo por meio de um enraivecido rancor no subsolo, por Deus que não é interessante: um romance precisa de herói e, no caso, foram acumulados intencionalmente todos os traços de um anti-herói, e, principalmente, tudo isto dará uma impressão extremamente desagradável, porque todos nós estávamos desacostumados da vida, todos capengamos, uns mais, outros menos. Desacostumamo-nos mesmo a tal ponto que sentimos por vezes certa repulsa pela “vida viva”, e achamos intolerável que alguém a lembre a nós. Chegamos a tal ponto que a “vida viva” autêntica é considerada por nós quase um trabalho, um emprego, e todos concordamos no íntimo que seguir os livros é melhor. E por que nos agitamos às vezes, por que fazemos extravagâncias? O que pedimos? Nós mesmos não o sabemos. Será pior para nós mesmos se forem satisfeitos os nossos extravagantes pedidos. Bem, experimentai, por exemplo, dar-nos mais independência, desamarrai a qualquer de nós as mãos, alargai o nosso círculo de atividade, enfraquecei a tutela e nós… eu vos asseguro, no mesmo instante pediremos que se estenda novamente sobre nós a tutela. Sei que talvez ficareis zangados comigo por causa disto, e gritareis, batendo os pés: “Fale de si mesmo e das suas misérias no subsolo, mas não se atreva a dizer ‘todos nós’”. Mas com licença, meus senhores, eu não me estou justificando com este todos. E, no que se refere a mim, apenas levei até o extremo, em minha vida, aquilo que não ousaste levar até a metade sequer, e ainda tomastes a vossa covardia por sensatez, e assim vos consolastes, enganando-vos a vós mesmos.De modo que eu talvez esteja ainda mais “vivo” que vós. Olhai melhor! Nem mesmo sabemos onde habita agora o que é vivo, o que ele é, como se chama. Deixai-nos sozinhos, sem um livro, e imediatamente ficaremos confusos, vamos perder-nos; não saberemos a quem aderir, a quem nos ater, o que amar e o que odiar, o que respeitar e o que desprezar. Para nós é pesado, até, ser gente, gente com corpo e sangue autênticos, próprios; temos vergonha disso, consideramos tal fato um opróbrio e procuramos ser uns homens gerais que nunca existiram. Somos natimortos, já que não nascemos de pais vivos, e isto nos agrada cada vez mais. Em breve, inventaremos algum modo de nascer de uma ideia. Mas chega; não quero mais escrever “do Subsolo”…

(Parágrafo final, Memórias do Subsolo de Fiódor Dostoiévski)


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