Na semana passada, em conversa ao telefone com a romancista
e poeta alemã Odile Kennel, com quem tenho a sorte de contar como tradutora,
ela soltou a frase: “A língua alemã é um campo minado.” Estávamos discutindo
sua tradução para o alemão de um artigo meu, escrito em português e que sairia
em um jornal alemão, no qual fui convidado a falar sobre poesia e política.
Tentávamos encontrar uma maneira de contornar as implicações nada salutares, em
alemão, para uma palavra tão simples em suas implicações em português: “comunidade”.
Se usássemos Gemeinde, caía-se em território da religião. Já Gemeinschaft
poderia ecoar conceitos manchados pelo nazismo. Acabamos usando Gemeinwesen,
por sugestão de Rainer Moehl, que no entanto tem um caráter mais abstrato do
que comunidade em português. Escrever em português tendo que prever possíveis
problemas de implicação política em alemão é enlouquecedor.
Richard-Pekrun
Léxico sobre o idioma alemão “Das Deutsche Wort”, de Richard
Pekrun
Pense em dois exemplos: ao discutirmos política em português
é comum que palavras como “terra” e “povo” sejam invocadas. Em alemão, estas
palavras estão talvez indelevelmente manchadas pela ideologia nazista. Há ainda
outras questões, de contexto histórico. Certa vez, conversando com um amigo
alemão, ele ficou furioso que eu defendesse um maior “isolacionismo”
norte-americano. Não demorou para que eu percebesse que a escolha desta palavra
tinha implicações completamente diferentes para ele, alemão, do que tinha para
mim, brasileiro. Para um alemão, o isolacionismo havia significado a entrada
tardia dos Estados Unidos na Segunda Guerra, e uma maior demora possível na
derrota nazista. Portanto, uma ideia de “intervencionismo” americano, para um
alemão, evoca majoritariamente aspectos políticos positivos. Significa a
derrota de Hitler e traz à mente imagens como a da ponte aérea de alimentos que
abasteceu a Berlim Ocidental durante o bloqueio soviético. Para um brasileiro
ou latino-americano de onde ditaduras sangrentas haviam sido instaladas com a
ajuda dos Estados Unidos, este intervencionismo tem praticamente apenas
implicações negativas.
Estas preocupações são claras e constantes para escritores
alemães. Há os que trabalham justamente nesta linha fina. Ler W.G. Sebald em
alemão é muito diferente de o ler em qualquer outra tradução, por excelente que
seja, porque este trabalho dentro da língua, o de implicações, só pode ser
compreendido em alemão e por alemães. Em seu livro Jubeljahre, o jovem poeta
berlinense Max Czollek voltou a uma ideia de desnazificação da língua em alguns
dos poemas, trazendo especificamente algumas destas palavras manchadas,
propositalmente, para o corpo do texto. Este é talvez um dos últimos estágios
na apredizagem de uma língua: a de perceber estes meandros sutis. Requer um
conhecimento amplo não apenas da História do país, mas dos textos e da
linguagem que formam esta História. Há 14 anos em Berlim, apenas nos últimos
anos estas sutilezas começaram a ficar mais claras para mim. A língua alemã
segue sendo, por ora, um campo minado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário