“Porque eu, meu filho, eu só tenho a fome. E esse modo
instável
de pegar uma maçã no escuro, sem que ela caia.”
Clarice Lispector, A Maçã no Escuro (1951)
Meu querido amigo, espero que esta o encontre bem, assim
como os seus. Quem dera nos víssemos com a mesma frequência que nossos
contemporâneos se lançam a polêmicas. Mas as últimas me trouxeram de novo uma
questão à mente, algo com o qual não consigo me acostumar, uma coisa estranha
que afeta tanto o campo a que dizem que você pertence, a chamada direita, e
aquele a que dizem que pertenço, a tal esquerda. Em primeiro lugar, a forma
como cada campo sempre escolhe nivelar o outro por baixo, pelos piores
exemplos, para facilitar sua vitória argumentativa, que talvez seja sempre
pírrica.
Veja por exemplo estas homenagens que pipocaram na Rede
pelos nove anos de morte de Bruno Tolentino, que estou certo as merece como
qualquer outro intelectual brasileiro que tenha defendido aquilo em que
acreditava to the best of his or her abilities. A maneira como o seu campo
acusa algumas de nossas preocupações políticas no campo literário como sendo
“extra-literárias”, não tendo nada a ver com poesia de fato e, no entanto, não
consegue deixar de apelar sempre a valores morais para celebrar seus heróis. Li
vários apelos ao “projeto civilizatório” de Tolentino, com elogios morais a sua
pessoa, e asserções sobre sua obra sem muita análise literária. São os valores
que o guiaram que parecem contar.
Estou certo que é muito possível que Bruno Tolentino venha
ainda a ocupar seu espaço. Obviamente já o ocupa, se tantos o elogiam e o
reivindicam como influência. Mas o que parece estar em jogo, como sempre, é uma
questão de hegemonia ideológica. É claro que vocês jamais veriam desta forma,
já que “ideologia” é a sempre a doença do campo adversário.
Nem Shakespeare nem Balzac impediram o projeto colonizador
genocida da Grã-Bretanha e da França. É óbvio que seria uma estultícia esperar
isso deles. Mas é o que estes clamores civilizatórios muitas vezes parecem
implicar. Ah, se ao menos lêssemos mais Shakespeare e Balzac, seríamos então
mais civilizados! Estes gritos “contra a barbárie contemporânea”. A barbárie
sempre esteve entre nós, muitas vezes, talvez a maioria, liderada pelos
bem-pensantes. Como nas páginas de Jean Améry, quando ele escreve:
“… uma pequena pressão da mão que controla o aparelho é
suficiente para transformar a outra – junto com sua cabeça, na qual talvez
estejam arquivados Kant e Hegel, e todas as nove sinfonias, e O Mundo como
Vontade e Representação – num leitão guinchante no matadouro.”
popol vuhSe nosso projeto, sendo honestos, é “civilizatório”
(ainda que Machado de Assis e Clarice Lispector, cada qual a sua maneira, já
nos tenham alertado contra tal ilusão), não seria muito mais efetivo tentar,
sem abrir mão de Shakespeare e Balzac, também uma abertura ao Outro, a outros
projetos de civilização, dos poetas chineses da Dinastia Tang aos griots
africanos, das cosmogonias ameríndias aos grandes poemas escondidos de nós em
línguas não oficiais? E, se mencionamos os chineses, não nos significará um
enriquecimento das possibilidades do minimalismo, conhecer tanto os haikais
clássicos dos chineses quanto os landays anônimos das mulheres afegãs, uma
tradição viva ainda hoje? Não só A Odisseia, mas também o Popol Vuh? Não apenas
os grandes homens brancos, mas também as grandes mulheres brancas e negras?
Homossexuais como Kaváfis, Villaurrutia e Pasolini, para quem a sexualidade era
central em seus projetos líricos? Reconhecermos que nós mesmos vivemos em uma
terra de culturas milenares, que tem muito mais línguas e tradições que apenas
a lusófona? O que há de tão bárbaro nesta reivindicação?
Por fim, nossa lealdade está com a poesia ou com o cânone?
Até quando vão confundir os dois? E que fetiche é este por um Ocidente imaginário,
que tem tanto sangue manchando as mãos, escondidas sob as luvas? Um Ocidente
que causou tanta destruição em nossa própria terra? Já não deveríamos saber
muito bem a que nos levou o projeto civilizatório do Ocidente?
A última coisa que quero nestes dias é me entregar a
polemicazinhas de machos-alfa que não conseguem sair da rinha e do ringue,
feito os velhinhos Ferreira Gullar e Augusto de Campos, constrangendo-se em
público. Mas, ou somos todos um pouco mais honestos sobre a maneira como nossas
ideologias e conflituosos projetos civilizatórios guiam nossas leituras e nossa
escrita, ou essas discussões todas serão sempre tingidas de desonestidade.
E, pois bem, se minha recusa do projeto civilizatório tal
qual vem sendo praticado no Ocidente pelos últimos 600 anos – digamos desde
1348, data da Grande Praga que dizem ter destruído a cultura trovadoresca–, não
tenho o menor problema com que chamem o meu projeto e minha ideologia de
anti-civilizatória.
Por fim, talvez desconexo disso tudo, mas nem tanto, me
despeço de meu grande amigo, querido contemporâneo exato, por quem nutro a
admiração que você por sua vez nutre por Bruno Tolentino, recomendando a você e
aos seus a leitura de Os Anéis de Saturno, de W.G. Sebald, outro que nos alerta
sobre nossas ilusões civilizatórias.
Com o abraço fraterno e leal, sabendo que poderei
esconder-me em sua casa quando vier a Guerra Civil, tal qual Federico García
Lorca escondeu-se na de Luis Rosales,
teu Ricardo.
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