sábado, 8 de agosto de 2015

Arte poética


Fitar o rio feito de tempo e água
e recordar que o tempo é outro rio,
saber que nos perdemos como o rio
E que os rostos passam como a água.
Sentir que a vigília é outro sonho
que sonha não sonhar e que a morte
que teme nossa carne é essa morte
de cada noite, que se chama sonho.
No dia ou no ano perceber um símbolo
dos dias de um homem e ainda de seus anos,
transformar o ultraje desses anos
em música, em rumor e em símbolo,
na morte ver o sonho, ver no ocaso
um triste ouro, tal é a poesia,
que é imortal e pobre. A poesia
retorna como a aurora e o ocaso.
Às vezes pelas tardes certo rosto
contempla-nos do fundo de um espelho;
a arte deve ser como esse espelho
que nos revela nosso próprio rosto.
Contam que Ulisses, farto de prodígios,
chorou de amor ao divisar sua Ítaca
verde e humilde. A arte é essa Ítaca
de verde eternidade, sem prodígios.
Também é como o rio interminável
que passa e fica e é cristal de um mesmo
Heráclito inconstante, que é o mesmo
e é outro, como o rio interminável.
- Jorge Luis Borges, em "O fazedor".

 [tradução de Josely Vianna Baptista]. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.


Arte poética

Mirar el río hecho de tiempo y agua
y recordar que el tiempo es otro río,
saber que nos perdemos como el río
y que los rostros pasan como el agua.
Sentir que la vigilia es otro sueño
que sueña no soñar y que la muerte
que teme nuestra carne es esa muerte
de cada noche, que se llama sueño.
Ver en el día o en el año un símbolo
de los días del hombre y de sus años,
convertir el ultraje de los años
en una música, un rumor y un símbolo,
ver en la muerte el sueño, en el ocaso
un triste oro, tal es la poesía
que es inmortal y pobre. La poesía
vuelve como la aurora y el ocaso.
A veces en las tardes una cara
nos mira desde el fondo de un espejo;
el arte debe ser como ese espejo
que nos revela nuestra propia cara.
Cuentan que Ulises, harto de prodigios,
lloró de amor al divisar su Itaca
verde y humilde. El arte es esa Itaca
de verde eternidad, no de prodigios.
También es como el río interminable
que pasa y queda y es cristal de un mismo
Heráclito inconstante, que es el mismo
y es otro, como el río interminable.

- Jorge Luis Borges, en "El hacedor", 1960.

A Luis de Camões
Sem lástima e sem ira o tempo vela
As heróicas espadas. Pobre e triste
Em tua pátria nostálgica te viste,
Oh capitão, para enterrar-te nela
E com ela. No mágico deserto
A flor de Portugal tinha perdido
E o áspero espanhol, antes vencido,
Ameaçava o seu costado aberto.
Quero saber se aquém dessa ribeira
Última compreendeste humildemente
Que tudo o que se foi, o Ocidente
E o Oriente, a espada e a bandeira,
Perduraria (alheio a toda a humana
Mudança) na tua Eneida Lusitana.

- Jorge Luis Borges, em "Quase Borges. 20 poemas e uma entrevista". [traduções de Augusto de Campos]. São Paulo: Terracota, 2013.


http://www.elfikurten.com.br/2014/06/jorge-luis-borges.html

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