sábado, 9 de novembro de 2013

Mamíferos

“Por que você fracassou no amor? Sem dúvida você encontrou uma pessoa com a qual teria podido juntar os trapos, uma moça ou um cara meio malucos. Foi há muito tempo. Você já bebia, mas não era a mesma coisa. Você os esperava em bares ardentes, em noites dilatadas. Eles apareciam com atrasos maravilhosos. Você não suportava que eles dormissem, e como era verão e eles tinham vinte anos, você os acordava. A vida era uma alvorada ininterrupta. Era uma moça alta ou um cara meio violento que desapareciam de vez em quando. Claro, você amou outros, e sem dúvida mais duradouramente. Você não quer estabelecer uma hierarquia das pessoas que amou. Você teve instantes gloriosos entre vinte e trinta anos, e acredita que não terá mais.

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Oh, vamos aos bares intermináveis que não julgam ninguém!

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...andava cada vez mais devagar na rua com seus pés gangrenados.

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Enquanto não vem a velhice ou um hipotético juízo final, nós o aconselhamos vivamente a continuar com toda serenidade essa vida feita de álcool, fumo, café e angústia borbulhante.

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O que é uma crise de angústia? Uma crise de angústia clássica dura cerca de duas horas. A gente acha que vai morrer. Não há perigo. Se você tiver duas ou três por semana, porém, vai pensar em se suicidar. A angústia afeta um número crescente de indivíduos, mas, felizmente, nem todos chegam à crise. O álcool é um excelente ansiolítico, depois se torna um ansiógeno. É um fator agravante num sujeito já ansioso. Há muitos motivos para ser ansioso: os genes, a educação, a vida moderna, conflitos internos insolúveis etc. O ar que você respira, os barulhos que você ouve, as cenas que você vê todos os dias, tudo isso é carregado de tensão. Sua carne absorve uma massa crescente de sinais alarmantes. São os sintomas do mundo. O mundo do qual você faz parte não vai nada bem. É burro, agressivo e hostil.

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Há quem viva somente de sensações e para as sensações [...]. Na realidade, eles foram tapeados pela vida e, como apenas intuem isso, caem sempre numa profunda tristeza em que não resta outro recurso senão aturdir-se, mentindo miseravelmente para si mesmos.

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A busca da sensação implica um egoísmo que me aterroriza. É evidente que isso não me impede de amar, mas faz os seres amados parecerem simples ocasiões para gozar ou sofrer, e me leva a esquecer por completo que existem por si mesmos. Vivemos no meio de fantasmas. Sonhamos em vez de viver.

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Com o passar das semanas, foi evitando-a cada vez mais.

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Depois se evitaram totalmente.

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A vida no leva a crer hoje em dia que podemos os separar das pessoas e amar em profusão. Claro que é mentira. Amar é excepcional. Não amar é a regra. Aceitar essa regra devia proporcionar um início de felicidade.
No entanto, vivemos nos queixando e quem aceita essa regra é acusado de complacência. Olhe à sua volta: os sofrimentos afetivos se multiplicam, os clubes de encontros se enriquecem. Eles mantém a ilusão do encontro no coração daqueles e daquelas cuja vida social não contribui para os encontros. Quem não tem dificuldade na ridícula arte da abordagem sabe que o problema não está aí: multiplicam-se os encontros e, quanto mais eles se multiplicam, menos o satisfazem. Os corações circulam de cama em cama como notas de dinheiro sem validade. Vocês, casais que preparam em silêncio o que acreditam ser a grande salvação – a separação –, que pensam que o amor, o verdadeiro amor, prolifera em torno de vocês como corpos num catálogo, cujas páginas somente seu cônjuge lhe impede de virar, não se enganem: em torno de vocês reina o terrível mercado da ausência de amor.

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Não paramos de amar os que um dia amamos. Mas de pessoa em pessoa, de peça em peça, gostaríamos de acreditar que pouco a pouco montamos um puzzle e que certo dia um rosto aparecerá. E não precisaremos mais procurar. No entanto, em termos de imagem total só temos a última, e ela não apaga as precedentes. Nenhuma figura é esquecida, nenhuma nos retém. É o que faz nossa vida não ser uma sucessão de fracassos, mas uma construção incerta inteiramente destinada ao amor.
Guerras são travadas, solidão contra solidão. Feridos enfrentam outros feridos, e o amor é a causa. O que recriminamos ao outro não é o fato de compartilhar conosco o mesmo ferimento, é o de ele ter encontrado os mesmos remédios. O amor é quando cada um acredita que o outro encontrou um remédio diferente, que vai curá-lo. mas na maior parte do tempo lutamos contra seres que se parecem demais conosco, que sofrem tanto quanto a gente, e nisso são invencíveis.”


 (Pierre Mérot – Mamíferos)

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