domingo, 30 de janeiro de 2011

O nono mandamento

— Amanhã eu volto.



— Vai com Deus. Levou o casaco?



— Marta, é verão. Deixa eu ir, tá na hora, fica bem.



Foi. Marta ficou na cama mais um pouco. Nunca pensou que se casaria com alguém que sairia em “viagem de negócios”. Pior que ele falava exatamente assim, que nem num filme antigo: “Semana que vem saio numa viagem de negócios”. Só faltava usar um bigodinho e chapéu. Será que se casaria, ou mesmo beijaria, alguém de bigodinho? Na adolescência aqueles buços eram inevitáveis, era isso ou nada, mas depois que os hormônios se aquietaram um bocadinho, nunca mais beijara ninguém de bigodinho ou mesmo bigodão. Barba ou cavanhaque também não gostava, mas bigode nunca mais. Achava — na verdade, começava a achar agora, nunca havia pensado nisso — que bigode era que nem pochete, não queria estar com um homem que usasse. Houve uma época em que achou que queria casar com alguém de barba. Qualquer um, desde que usasse barba. Barbas guardam cheiros, ela saberia se fosse traída. Um relacionamento com um babaca mentiroso gera essas insanidades. Teria que usar barba e gostar de sexo oral, claro, pois sem isso a barba não serviria como evidência do crime. Sexo oral! 40 anos na cara e não conseguia falar nada que não fosse educado ou eufemismo. “Chupar”, mesmo em pensamento, soava como coisa ruim, feia. Pelo menos gostava do ato em si!



— “Ato em si”, que Deus tenha piedade de minha alma, nem pensar livre eu consigo!



Hora de levantar, escovar os dentes, tomar um café, sair não precisava, estava de folga. 24 horas só suas, sem o chato do… epa! “Chato”? Não se lembrava de ter pensado assim, pelo menos não diretamente. Já se havia chateado e enfadado com ele, mas isso é coisa pela qual todo mundo passa. Chamar de chato era tão definitivo quanto chamar de corno e ai meu Deus como foi acontecer essa associação de idéias!!!??? Não, nem pensar. Pior que ele estava de folga hoje, também; certamente sozinho em casa, certamente disponível. A esposa trabalhava em plantões, por que não? Banho, rápido. Frio, de preferência; muito frio. Gelado, se pudesse, que o telefone está perigosamente perto. Pronto, não foi suficientemente rápida ao banho, já está o telefone em uma mão, com cacófato e tudo, e a outra já discando.



— Alô…



— Alô?



Voz de mulher. Desligar, rápido! Mas não, é preciso fazer algo.



— Alô, quem fala?



— Marta, quem é?



Meu Deus, ela se chama Marta também!



— Oi, meu nome também é Marta, trabalho com seu marido…



Meu Deus, meu Deus, meu Deus, o que diabos está fazendo?



— Oi, ele sempre fala de você, como vai?



Pera lá, fala o quê?



— Fala o quê?



— Ah, que você é divertida, inteligente, eu quase fico com ciúmes!



— E não fica por quê? Quer dizer, que bom que não fica, mas normalmente ficaria; quer dizer, eu ficaria, pelo menos!



— Ah, você não o conhece como eu. Ele é o homem mais caseiro do mundo, fiel como um cachorro velho!



— Acho que ele não ia gostar de ser descrito assim…



— E quem liga para o que aquele chato gosta?



Aquilo a espantou: chato? Será que ela estava fadada a atrair chatos? Seria um carma, algum atavismo?



— Chato como? Ele é bem agradável no trabalho…



— Desculpe, não devia ter falado assim, mas a coisa está feia por aqui. Acabamos de brigar, ele saiu meio que batendo a porta, desculpe, ainda não retomei o controle. E por favor, não comente com ele que eu desabafei com você.



— Desabafou? Mas você não disse nada, só que ele é chato!



— Bem, é quase um desabafo.



— Ué, pode falar à vontade. Não trabalho hoje, estou gostando de conversar. Meu marido quase não conversa comigo.



— Ah, o teu também? O meu chega, conta o que aconteceu no escritório como se fosse uma saga nórdica…



— Saga nórdica é ótimo!



— … e quer que eu demonstre interesse. O único nome em que presto alguma atenção é o teu, sabe como é: Marta também. Fora isso, entra por um ouvido e sai pelo outro. Um saco, um tédio mortal!



— Meu Deus, aqui é igualzinho! Ai, meu Deus, preciso parar de falar “Meu Deus”!



— Por quê?



— Eu sempre tive mania de falar “Meu Deus”. No colégio as irmãs viviam me dando castigos pra eu parar de invocar “Seu santo nome em vão”! Acho que eu gostava daqueles castigos, cada vez falava mais!



— Não diz que você estudou em colégio de freiras! Eu também!



— Que coisa, onde?



— Minas.



— Ah, eu estudei aqui mesmo. Mas tinha uma professora mineira que eu adorava. Ela vivia me botando de castigo, um dia me botou no milho.



— Mas isso não era proibido?



— Era, e muito; além de me castigar ela me fazia prometer que não contaria para ninguém.



— Hummm… excitante, isso, hein?



— Pois é. Eu lembro até hoje da voz dela, do sotaque… até que era parecido com o teu.



— Mas eu não tenho sotaque!



— Você que pensa! Ninguém acha que tem. Irmã Anunciação também não achava que tinha.



— Mas que coisa, isso. As freiras me botavam de castigo, também, mas por que eu vivia conversando, não parava nunca. Tinha uma amiga com quem eu passava o dia todo, e elas viviam implicando, separavam a gente, diziam que era pecado falar tanto.



— Eu não tinha amigas, não; a irmã Anunciação implicava com todas, dizia que eu devia me preparar para o noviciado.



— Por que você não passa por aqui pra gente tomar um café?



— Ok, não estou fazendo nada mesmo!



Por via das dúvidas depilou-se, tomou um banho caprichado e colocou uma calcinha nova.



Marisa Toscana – Escritoras Suicidas


Marisa Toscana, nascida Ferrara, em Pistoia, Italia, em 26/9/1942. Veio para o Rio de Janeiro ainda criança, refugiada da guerra. Casou-se em 1959, aos 17 anos, com o adido cultural de Luxemburgo no Brasil, que faleceu durante a lua-de-mel em Cap d’Antibes. Pintora de talento, participou de exposição coletiva no Museu de Belas Artes, em 1963. Deixou apenas textos inéditos, entre os quais este, pois nem seus amigos mais íntimos sabiam de sua literatura. Suicidou-se em 12 de setembro de 2001, ao saber da morte de seu amante em New York, atropelado na véspera.

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