sexta-feira, 8 de novembro de 2019

O supremo trabalho


 - ROBERTO DaMATTA



Quando visitei os Estados Unidos pela primeira vez, em setembro de 1963, para estudar em Harvard, ouvi de um amigo que todo americano tinha um médico, uma igreja e um advogado. Não fiquei surpreso com o módico nem com a igreja, porque desde criança tinha visto médicos dando consulta em nossa casa com seis irmãos, enquanto a igreja era parte de nossas vidas dominicais. O advogado como um componente da vida rotineira me deixou curioso. Ò amigo disse: “Nas democracias, como você sabe (eu não sabia, mas fingi saber), há muitas disputas e conflitos, daí a necessidade do advogado”. Esse jovem professor assistente, Richard Moneygrand, divorciou-se de sua primeira mulher meses depois dessa observação. Foi uma separação conflituosa, cm que o advogado teve um relevante papel no equilíbrio legal e psicológico do meu amigo americano. Era um elemento de moderação básico, num sistema em que a liberdade era um direito e a igualdade um valor. No caso, a uma separação entre um casal que passou da paixão incontida e eterna à extrema indiferença por parte do amante masculino, cujo projeto não era mais a mulher, mas uma outra com quem logo em seguida casou-se e da qual divorciou-se novamente. Um outro amor que o protagonista tinha, conforme me explicou Richard com todas as letras, direito constitucional. Para ele, os americanos (e todos os seres humanos, homens ou mulheres, velhos ou jovens, ricos ou pobres) tinham assegurado o direito à felicidade. Que, para meu amigo, incluía não apenas o conforto material sem ostentação, mas o amor. O tal "love” de que eu tanto gostava e que era o personagem principal de um estilo de música popular tão sofisticado.

Foi nesses primeiros meses que tive, como ocorreu igualmente com um visitante ilustre que me antecedeu em 1831 - Alexis de Tocqueville a noção de duas dimensões indispensáveis a uma democracia. À primeira era a moderação, cujo papel era representado pelo advogado. A segunda era o conflito aberto e horizontalizado, em que as pessoas entravam não como representantes de grupos ou de valores morais, mas individualmente. Como subjetividades autônomas e por sua livre e espontânea vontade.


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