sexta-feira, 8 de novembro de 2019

O feijão e a nuvem



 Chicago é, na verdade, uma cidade única nas suas relações acirradas entre arte e arquitetura

Esta semana aconteceu a última aula do meu curso sobre a canção brasileira na Universidade de Chicago.
O “Maracatu atômico”, de Nelson Jacobina e Jorge Mautner, estava no centro das questões finais, na versão de Gilberto Gil e depois na de Chico Science. No dia seguinte soube da morte de Jacobina, cuja discreta e batalhada serenidade e cujas melodias sóbrias e potentes sempre me tocaram. Fiquei feliz de que ele tivesse estado conosco, através dessa canção profundamente afirmativa. Sei que ele venceu durante muito tempo a doença, para além de todas as previsões médicas, simplesmente afirmando a vida, com arte. Assim seja.

Aqui, sinto-me finalmente capaz de dizer alguma coisa sobre a famosa e singular conformação arquitetônica e urbanística da cidade, depois de dois meses e meio de convivência. Embora se compare Chicago, volta e meia, com São Paulo, como metrópoles de empuxe industrial, algo da topografia e do urbanismo se parece surpreendentemente com o Rio, descontadas as abissais e montanhosas diferenças (isto é, descontados todos aqueles abismos e todas aquelas montanhas, literais ou metafóricas, que são impensáveis aqui). Mas é que Chicago se estende ao longo do Lago Michigan, lago-mar cuja borda é um parque público que pega de ponta a ponta a extensão urbana, como se a cidade fosse acompanhada em toda a linha por uma espécie de Aterro do Flamengo modulado com a Lagoa Rodrigo de Freitas.

As vias expressas e as parkways americanas se confundem na paisagem com vias de pedestres que passam por baixo ou por cima delas, mostrando-se e escondendo-se em transições bucólicas que têm a água só eventualmente como praia, e quase sempre como pano de fundo. É possível sair do Hyde Park, ao sul, em direção ao norte, a pé ou de bicicleta, e ir vendo a massa fina dos prédios do centro se mostrando em relances e aproximações gradativas, num show de escalas e contraplanos que criam muitas situações antes de passar pelo aquário, pelo planetário e chegar ao Millennium Park. O modelo é o mesmo que gerou o Aterro de Reidy, Burle Marx e Lota Macedo Soares, além de ser — o das parkways — uma das fontes explícitas do Plano Piloto de Brasília por Lúcio Costa.

No Millennium Park, a enorme escultura de aço espelhado de Anish Kapoor, nomeada “ Cloud Gate ” (“Portal Nuvem”), mas conhecida como “The bean” (“O feijão”), faz o papel de um epicentro imaginário (se é que se pode falar de epicentro numa cidade tão longilínea e reticulada como Chicago). E não é fácil explicar por quê. Começa que nenhuma fotografia tinha me dado a dimensão inusual dessa obra, pelos espaços e reflexos paradoxais que ela cria, e pela maneira como se localiza em meio aos edifícios. Seria preciso explicar, antes de mais nada, que Chicago é ela mesma um acontecimento arquitetônico: incendiada quase completamente em 1871, foi reconstruída por jovens arquitetos num momento de grandes saltos técnicos, como o domínio da tecnologia do elevador, que liberou a construção de arranha-céus, e o domínio das estruturas internas aos edifícios que permitiam com que se criassem grandes salões dentro dele, como o Ganz Hall, projetado por Sullivan.

Esse paradigma inovador do fim do século XIX prosseguiu através das residências pioneiras de Frank Lloyd Wright no início do século XX, do surto de edifícios déco nos anos 1920 e 30, ligados, digamos, ao imaginário da Gotham City, do “international style”, moderno, de Mies van der Rohe, nos anos 1940 aos 60, da leva pós-moderna nos anos 1980. Na pouco notável produção contemporânea, vale notar que o edifício Aqua Tower, de Jeanne Gang, em 2009, recebe a influência explícita do Copan de Niemeyer na Avenida Ipiranga, em São Paulo, e faz homenagens sutis a certos traços de estilo de Lina Bo Bardi.

Voltando à escultura de Anish Kapoor: sua superfície polida, em forma de ovo que tivesse engolido uma fita de Moebius, espelha e suga para dentro dela as imagens de tudo o que está à sua volta, os prédios de todas as décadas, o céu, as nuvens, o sol, as árvores, as pessoas que se aproximam e que se
distanciam  . É possível entrar por baixo dela, como se entrássemos num portal e num nicho vertiginoso de imagens e autoimagens multiplicadas, estranhamente superficiais e longínquas. Como um ovo, a escultura parece suspender o dilema da interioridade e da exterioridade. Sua pele de aço tem o poder aparente de engolir e de repelir as imagens, como se se apoderasse delas e as jogasse para um espaço que é dentro e fora. Como se a escultura fosse ela mesma o cérebro em que se refletem as imagens das coisas, inteiramente interiores e inteiramente exteriores a ele.

O resultado é uma peça de entretenimento capaz de excitar crianças e pelotões de turistas fotografantes e, ao mesmo tempo, nos colocar diante de enigmas como o do caráter imaginário do real e o da nudez real das imagens, cujo lugar é longe, perto, dentro, fora, superfície e nada. Essa grande peça de aço inoxidável polido espelha a arquitetura da cidade à sua volta, lançando-a para o lugar indeterminado em que a refrata na sua superfície reluzente.

Chicago é, na verdade, uma cidade única nas suas relações acirradas entre arte e arquitetura. E uma cidade campeã na defesa do espaço público. É significativo que a terceira cidade norte-americana o seja, e que a primeira, Nova York, tenha um enorme espaço público no centro de Manhattan, e que a segunda, Los Angeles, seja a campeã mundial da privatização de todos os espaços.

 - JOSÉ MIGUEL WISNIK

O Globo.06/02/2012


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