sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Sobre vagueza, ou, quando um monte de areia não é um monte de areia?



Timothy Williamson - tradução de Thiago Melo.

Imagine um monte de areia. Você cuidadosamente remove um grão. Há ainda um monte? A resposta é: sim. Remover um grão não torna um monte em não monte. O princípio pode ser aplicado também quando remove outro grão, e então outro… Após cada remoção, há ainda um monte, conforme o princípio de que remover um grão não torna um monte em não monte. Mas havia, finitamente, apenas muitos grãos para começar, de modo que você se depara com um monte com apenas três grãos, então um monte com só dois grãos, um monte só com um grão, e finalmente um monte com nenhum grão. Mas isso é ridículo. Deve haver algo errado com o princípio. Algumas vezes, removendo um grão, torna um monte de areia num não monte. Mas isso parece ridículo também. Como pode um grão fazer tanta diferença? Esse antigo problema é chamado de paradoxo de sorites, da palavra grega para “monte”.

Não haveria problema se tivéssemos uma boa e precisa definição de “monte” que nos diga exatamente quantos grãos você precisa para um monte. O problema é que não temos tal definição. A palavra “monte” é vaga. Não há um claro limite entre monte e não monte. Na maioria das vezes, isso não importa. Entendemos bem o suficiente para aplicar a palavra “monte” com base nas impressões casuais. Mas se a prefeitura te acusasse de ter despejado um monte de areia num local público, e você negasse que era um “monte”, se você teve qua pagar uma multa grande, essa situação então pode depender do significado da palavra “monte”.

Questões morais e legais mais importantes também envolvem vagueza. Por exemplo, no processo de desenvolvimento humano, desde a concepção, o nascimento, até a maturidade, quando primeiramente passa a existir uma pessoa? No processo de morte cerebral, quando não existe mais uma pessoa? Tais questões importam para admissibilidade de intervenções médicas, como o aborto e o desligamento de aparelhos. Então, para discutir com propriedade, devemos ser capazes de raciocinar corretamente com palavras vagas a exemplo de “pessoa”.

Você pode achar aspectos de vagueza na maioria das palavras do Português ou em qualquer outra linguagem. Em voz alta ou em nossas cabeças, raciocinamos na maior das vezes com termos vagos. Esse tipo de raciocínio pode facilmente gerar um paradoxo tipo o do sorites. Você pode ficar pobre ao perder um centavo? Você pode ficar alto ao crescer um milímetro? A princípio, os paradoxos parecem ser truques verbais banais. Mas, quanto mais rigorosamente os filósofos os estudaram, mais profundo e difíceis se tornaram. Eles levantam dúvidas sobre os mais básicos princípios lógicos.

Tradicionalmente, a lógica tem por base o pressuposto de que toda afirmação (e negação) é verdadeira ou falsa (e não as duas coisas simultaneamente). Isso é chamado de bivalência, porque diz que há apenas dois valores de verdade: verdade e falsidade. A lógica Fuzzy é uma influente abordagem alternativa para a lógica da vagueza que rejeita a bivalência em favor de um contínuo grau de verdade e falsidade, que vai da perfeita verdade de um lado à perfeita falsidade de outro. No meio, uma afirmação pode ser simultaneamente meio verdadeira e meio falsa. Conforme essa visão, quando você remove um grão após o outro, a afirmação “Há um monte” torna menos e menos verdadeira por ínfimos passos. Nenhum passo te leva da verdade perfeita para a falsidade perfeita. A lógica Fuzzy rejeita alguns princípios-chave da lógica clássica, nos quais se baseia a matemática padrão. Por exemplo, o lógico tradicional diz, em cada ponto, “Ou há um monte ou não há”; isso é um exemplo de um princípio geral chamado terceiro excluído. O lógico fuzzy responde que quando “há um monte” é apenas uma meia verdade, então “há um monte ou não há um monte” é apenas meia verdade também.

À primeira vista, a lógica fuzzy pode parecer uma natural e elegante solução ao problema da vagueza. Mas quando você desenvolve suas consequências, ela é menos convincente. Para ver o porquê, imagine dois montes de areia, uma exata cópia de um e outro, um à direita e outro à esquerda. Ao remover um grão de um lado, você remove um grão exatamente correspondente do outro lado também. A cada estágio, a areia da direita e a areia da esquerda são grão por grão cópias exatas uma da outra. Isso é muito claro: se há um monte à direita, então há uma monte à esquerda também, e vice e versa.

Agora, conforme o lógico fuzzy, quando removemos os grãos um a um, mais cedo ou mais tarde chegamos no ponto onde a afirmação “há um monte à direita” é meio verdadeira e meio falsa. Desde que o que está à esquerda copia o que está à direita, “há um monte à esquerda” é meio verdadeira e meio falsa também. As regras da lógica fuzzy então implicam que a afirmação complexa “Há um monte à direita e nenhum à esquerda” é também meio verdadeira e meio falsa, o que significa que podemos estar igualmente propensos entre aceitar e rejeitá-la. Mas isso é absurdo. Devemos rejeitar totalmente esta afirmação, já que “Há um monte à direita e nenhum à esquerda” implica que há uma diferença entre o que está à direita e o que está à esquerda - mas não há essa diferença; eles são grão a grão duplicados. Assim, a lógica fuzzy obtém o resultado errado. Ela perde as sutilezas da vagueza.

Há muitas outras propostas complicadas para revisar a lógica e acomodar a vagueza. Minha visão é que todas elas estão tentando consertar algo que não está estragado. A lógica Padrão, com bivalência e terceiro excluído, é bem testada, simples e poderosa. A vagueza não é um problema sobre lógica; é um problema sobre conhecimento. Uma afirmação pode ser verdadeira sem que você saiba que ela é verdadeira. Existe de fato um ponto em que você tem um monte, você remove um grão, e você não tem mais um monte. O problema é que você não tem meios para reconhecer esse ponto quando ele chega. Assim, você não sabe o ponto em que isso acontece.

Uma palavra vaga como “monte” é usada tão imprecisamente que qualquer tentativa de localizar seus limites exatos não possui solidez e confiança para continuar. Embora a linguagem seja uma construção humana, isso não faz ela ser transparente a nós. Como as crianças que fazemos, os significados que fazemos podem guardar segredos de nós. Felizmente, nem tudo está escondido de nós. Frequentemente, nós sabemos que há um monte; frequentemente, nos sabemos que não há um. Algumas vezes, nós não sabemos se há ou não. Ninguém nunca nos deu o direito de saber tudo!

Timothy Williamson é o professor Wykeham de lógica na Universidade de Oxford. Seus principais interesses de pesquisa estão na filosofia da lógica, epistemologia, metafísica e filosofia da linguagem. Seu último livro é Tetralogue: I’m Right, You’re Wrong (2015).

Texto originalmente publicado no site Aeon: On vagueness, or, when is a heap of sand not a heap of sand?

*Não domino a língua inglesa. Portanto, críticas a esta tradução são bem vindas.

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