sexta-feira, 4 de janeiro de 2019


Por que algumas pessoas insistem que uma ideia filosófica depende muito da biografia do filósofo?
Muitos professores de filosofia insistem que o ensino e a análise de ideias filosóficas não podem ser feitos sem levar em conta a vida pessoal e profissional dos filósofos que as conceberam. No entanto, a justificação desta insistência não apresentam. Esta falta de justificativa é a primeira pista para entender a posição que tomam.

Quando não apresentamos justificativas de nossas posições, as pessoas interessadas no assunto vão procurar pontos que possam justificar as posições apresentadas. Fazemos uma retrospectiva da memória que temos da pessoa. Sua história pessoal, as relações que tivemos com ela, se for o caso, o tipo de trabalho que faz etc. Aí, se, por exemplo, a pessoa defende a liberação do uso de drogas, levamos em conta se ele é um usuário, se ela em algum outro momento conversou sobre o assunto, se ela é de esquerda etc. Enfim, procuramos razões para ela defender a ideia que defende na sua biografia. É isso que um historiador da filosofia faz quando filósofos não apresentam razões ou boas razões para as ideias que defende: ele vai procurar na biografia do filósofo. Não é por acaso, portanto, que os professores que mais insistem na importância da biografia de um filósofo são aqueles que estudam ideias filosóficas que não são bem justificadas.

Seguindo esta linha, constatamos que as pessoas que sustentam que o ensino e a análise de ideias filosóficas não podem ser feitos sem levar em conta a vida pessoal e profissional dos filósofos dão como já dado definitivamente que as ideias filosóficas são subjetivas. Isso significa que as ideias filosóficas dependem muito do sujeito que as concebem. Se alguém defende que a definição de conhecimento é X, ela defende isso devido, fortemente ou exclusivamente, a seus interesses pessoais. Assim, as ideias filosóficas, antes de ser sobre o mundo, são sobre as pessoas que as concebem. Por exemplo, Platão defendeu que a definição de conhecimento é X porque é desejo dele que a definição seja essa, não porque ela de fato é essa. Nessa situação, faz todo sentido considerar a biografia de um filósofo como indispensável para entender suas ideias.

Já com relação às ideias de outras áreas de conhecimento, pensam que são objetivas ou possuem graus de objetividade que as filosóficas não possuem. Por isso, não veem dificuldades em ensinar e analisar uma ideia da física ou da matemática independente da biografia do autor.

O problema é que não é definitiva ainda a posição de que as ideias filosóficas são subjetivas e as ideias das ciências naturais e da matemática são objetivas. Este é um problema filosófico em aberto. Muitos filósofos, inclusive eu, defendem que as ideias filosóficas são mais objetivas. Outros são céticos, ou seja, não tomam posição sobre o assunto. Enfim, a resposta para este problema ainda está sendo investigada. E não há uma resposta definitiva ainda.

No mínimo, portanto, as razões que um subjetivista filosófico tem para considerar a biografia de um filósofo são as mesmas que um objetivista ou um cético tem para não considerar. Caso o subjetivista ache que ele tem razões melhores, é preciso apresentar. Apenas expressar uma posição é expor uma mera opinião. E acho que há consenso de que o ensino de filosofia não é o ensino de meras opiniões. Pois seria a disseminação de preconceitos, de ideias sem a devida avaliação crítica.




Por que argumentos circulares são falaciosos?
Uma das maiores dificuldades que enfrentei em sala de aula foi a de convencer os alunos que a falácia da circularidade em argumentos é mesmo uma falácia. Por mais exemplos que você use para mostrar que tais raciocínios não funcionam, sempre ainda fica a dúvida de saber onde está o erro. Os alunos questionam: “E daí? Ainda sim é uma justificativa”. Isso acontece porque nós professores pressupomos que os alunos conseguem reconhecer diretamente que a circularidade argumentativa é um erro - por isso, nos contentamos com exemplos. Mas nem nós professores conseguimos reconhecer diretamente. Para reconhecer a circularidade argumentativa, precisamos dos conceitos de cogência e de justificação última.

A falácia da circularidade acontece quando procuramos justificar uma ideia com outra de mesma força cognitiva. Por exemplo, a proposição “Todos os acontecimentos naturais são regulares” possui a mesma força cognitiva que a proposição “Observamos que os acontecimentos naturais são regulares. Veja a formulação de um argumento envolvendo estas ideias:

 Observamos que os acontecimentos naturais são regulares.

 Logo, todos acontecimentos naturais são regulares.

O que justifica a ideia “Os acontecimentos naturais são regulares” não pode ser a ideia “Observamos que os acontecimentos naturais são regulares”. Isso decorre do fato de que a observação que os acontecimentos naturais são regulares não garante que os acontecimentos são regulares. Pode acontecer de nossa observação ser falha. Podemos falhar, por exemplo, em não constatar que a regularidade vale para alguns acontecimentos naturais e não vale para outros. Nesse caso, não se segue que todos os acontecimentos naturais são regulares. Só alguns são regulares. Aí, não podemos nos convencer da verdade da ideia que usamos para justificar, isto é, da verdade da premissa. Tal fato envolve os dois conceitos já mencionados: cogência e justificação última.

Em raciocínios cogentes, pretendemos justificar a conclusão com base nas premissas. Isso significa que as premissas devem ser mais confiáveis ou mais fortes do que a conclusão, já que é a partir das premissas que procuro garantir a verdade da conclusão. Isso acontecendo, o argumento é cogente. Se a premissa não for mais confiável do que a conclusão, não conseguimos garantir por meio do argumento a verdade da conclusão. No raciocínio formulado acima, a ideia expressa na premissa possui a mesma força cognitiva da ideia expressa na conclusão. Logo, não consegue-se garantir a verdade da conclusão através da premissa. As duas ideias precisam igualmente de uma justificação para acreditar na verdade delas.

No fim das contas, a circularidade é uma falácia porque a premissa não é uma justificativa última, ainda permanece a necessidade de mais uma justificação. No exemplo que estou usando, ainda permanece a dúvida de saber o que justifica a ideia de que os acontecimentos naturais são regulares. Isso quer dizer que a premissa nem sequer cumpre sua função de justificar* a conclusão. Portanto, o argumento é falacioso. Parece haver uma justificativa* para a conclusão, mas não há.

*Comentando sobre este texto no Facebook, Desidério Murcho me lembrou de um ponto muito importante para este assunto. É o da distinção entre justificação e justificação adequada. Como disse ele, “Uma justificação má é ainda uma justificação”. No entanto, não é uma justificação adequada. Os argumentos circulares possuem justificação mas não justificação adequada. Então, aproveito para corrigir o final do texto: isso quer dizer que a premissa nem sequer cumpre a função de justificar adequadamente a conclusão. Portanto, o argumento é falacioso. Parece haver uma justificativa adequada para a conclusão, mas não há.




O que seria melhor?
Às vezes me pergunto se não seria melhor viver uma vida profissional confortável e acadêmica do que essa vida, por um lado, degradante e, por outro lado, desafiadora que vivo na escola pública. Ao ler artigos de alguns professores universitários brasileiros e de grandes nomes estrangeiros como Victor Goldschmidt e Gilles-Gaston Granger, vejo que não. Viver sem saber bem o que está pensando e dizendo, mesmo no maior conforto de Paris, seria uma frustração grave para mim. Uma frustração semelhante a de um engenheiro civil incapaz de construir um prédio minimamente estável. Prefiro viver como Sócrates.

Thiago Melo, professor de filosofia

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