"O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas.
Mas é isso o que tememos: o não ter certezas. Por isso trocamos o voo por
gaiolas. As gaiolas são o lugar onde onde as certezas moram." Os Irmãos
Karamazov, Dostoiévski.
Há no homem um desejo imenso pela liberdade, mas um medo
ainda maior de vivê-la. Algo parecido disse Dostoiévski, ou talvez eu esteja
dizendo algo parecido com o dito pelo escritor russo. No entanto, como seres
significantes que somos, analisamos as coisas sempre a partir de uma
determinada perspectiva e, assim, passamos a atribuir-lhes valor. Dessa
maneira, até conceitos completamente opostos, como liberdade e escravidão,
podem se confundir ou de acordo com o prisma de quem analisa, tornarem-se
expressões sinônimas, como acontece no mundo distópico de George Orwell, 1984,
em que um dos lemas do partido – “Escravidão é Liberdade” – é repetido à
exaustão.
Não à toa, as boas distopias têm como grande valor predizer
o futuro. E em todas elas – 1984, Admirável Mundo Novo, Fahrenheit 451, Laranja
Mecânica – há um ponto em comum: a liberdade dos indivíduos é tolhida e,
consequentemente, convertida em escravidão. No entanto, através de mecanismos
sócio-políticos a escravidão é ressignificada como liberdade, de modo que mesmo
tendo a sua liberdade cerceada, os indivíduos entendem gozarem plenamente
desta.
Nas histórias supracitadas, embora a maior parte da
população esteja acomodada e aceite com enorme facilidade absurdos, existem
indivíduos que se permitem compreender as suas reais situações e ousam lutar
contra a ordem estabelecida. Esse processo é, todavia, extremamente doloroso,
uma vez que é muito mais fácil se acomodar a enfrentar a realidade e todas as
consequências dolorosas que enfrentamos invariavelmente quando decidimos sair
da caverna, para lembrar Platão.
Posto isso, há de se considerar que ser verdadeiramente
livre requer a responsabilidade de encarar o mundo sem fantasias, ou seja, tal
como ele é. Dessa forma, existe no homem grande suscetibilidade a aceitar o
irreal como real, a fantasia como verdade, a Matrix como o mundo real. Sim,
Matrix é um grande exemplo do medo que possuímos de encarar a realidade. No
personagem de Cypher (Joe Pantoliano) encontramos o maior expoente desse
comodismo, já que sendo a realidade um mundo destruído, um caos constante, é
muito melhor viver na Matrix, onde ele “pode ser o que quiser”, ainda que não
passe de uma grande mentira.
Em outras palavras, Cypher representa a ideia de que sendo a
realidade algo tão assustador, a ignorância é uma benção, pois sendo ignorante,
pode-se comprar mentiras como verdades facilmente, bem como, aceitar a Matrix
como realidade e a escravidão como liberdade.
As realidades apresentadas no mundo das artes (ficções, que
ironia), refletem a nossa própria realidade, em que, assim como Cypher, temos
preferido viver vidas fantasiosas, cercadas de superficialidade e aparências,
determinadas pelo hedonismo da sociedade de consumo e, consequentemente, o
nosso egoísmo ganancioso buscando galopantemente realizar todos os desejos que
impedem de acordarmos de um sonho ridículo.
Apesar de tudo isso, pode-se considerar que de fato é melhor
ser um escravo feliz do que um ser livre, triste, inconformado e amedrontado.
No entanto, a problemática ganha corpo na medida em que se entende que há
coisas que só podem ser feitas sendo o sujeito livre, uma vez que a gaiola é
sempre limitadora, sobretudo, aos desejos mais intrínsecos e, portanto, mais
latentes e verdadeiros no ser. Assim, por mais que a escravidão seja ressignificada,
fantasiada e “transformada” em liberdade, sempre haverá pontos em que o
indivíduo sentirá necessidade de alçar voos mais altos, os quais, obviamente,
não poderão ser realizados, haja vista a limitação das gaiolas, o que implica a
insatisfação, ainda que tardia, da condição escrava em que o indivíduo se
encontra.
Sendo assim, constatamos que “O medo de ser livre provoca o
orgulho em ser escravo”, posto que para gozar a liberdade é preciso coragem
para se arriscar no terreno das incertezas e da luta. E, assim, temos preferido
permanecer na caverna, orgulhosos das nossas sombras, já que lembrando outra
vez Dostoiévski – “As gaiolas são o lugar onde as certezas moram”. Entretanto,
como disse, mais hora, menos hora, nos enxergamos e percebemos que o que nos
circunda é falso, de tal maneira que desejamos sair, correr, voar, ser livres.
O grande problema nisso é que quando se acostuma a viver em
uma gaiola, quando se é livre perde-se a capacidade de voar, pois as correntes
que nos prendem são criadas pelas nossas mentes, de forma que mesmo fora da
caverna, continuamos prisioneiros de uma mente que se acostumou a ser covarde e
preferiu acreditar na contradição de que ser escravo era o maior ato de
liberdade.
ERICK MORAIS
Um menestrel caminhando pelas ruas solitárias da vida.
fonte : © obvious:
http://obviousmag.org/genialmente_louco/2017/o-medo-de-ser-livre-provoca-o-orgulho-em-ser-escravo.html#ixzz4YUIlPGzg
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