quinta-feira, 13 de novembro de 2014

LIVRO SOBRE NADA

13.
Venho de nobres que empobreceram.
Restou-me por fortuna a soberbia.
Com esta doença de grandezas:
Hei de monumentar os insetos!
(Cristo monumentou a Humildade quando beijou os
pés dos seus discípulos.
São Francisco monumentou as aves.
Vieira, os peixes.
Shakespeare, o Amor, a Dúvida, os tolos.
Charles Chaplin monumentou os vagabundos).
Com esta mania de grandeza:
Hei de monumentar as pobres coisas do chão mijadas
de orvalho.
11.
Prefiro as máquinas que servem para não funcionar:
quando cheias de areia de formiga e musgo — elas
podem um dia milagrar de flores.
(Os objetos sem função têm muito apego pelo aban-
dono)
Também as latrinas desprezadas que servem para ter
grilos dentro — elas podem um dia milagrar violetas.
(Eu sou beato em violetas)
Todas as coisas apropriadas ao abandono me religam
a Deus.
Senhor, eu tenho orgulho de ser imprestável!
(O abandono me protege)
8.
Nasci para administrar o à toa
o em vão
o inútil.
Pertenço de fazer imagens.
Opero por semelhanças.
Retiro semelhanças de pessoas com árvores
de pessoas com rãs
de pessoas com pedras
etc etc.
Retiro semelhanças de árvores comigo.
Não tenho habilidades pra clarezas.
Preciso de obter sabedoria vegetal.
(Sabedoria vegeta é receber com naturalidade uma rã
no talo)
E quando esteja apropriado para pedra, terei também
sabedoria mineral.
(do LIVRO SOBRE NADA, 1996)

Manoel de Barros (1916-2014)

Nenhum comentário: