sábado, 3 de maio de 2014

DESTERRADOS

HISTÓRIA


Os exilados da Sibéria brasileira
Após as revoltas da Vacina e da Chibata, no início do século 20, milhares de “criminosos” foram banidos do Rio e enviados ao Acre

Publicado em 03/05/2014 | DIEGO ANTONELLI

Mais de duas mil pessoas tiveram suas vidas profundamente alteradas pelo governo brasileiro durante as revoltas da Vacina (1904) e da Chibata (1910). Desterrados, ou seja, banidos à revelia do Rio de Janeiro para o Acre, muitos desses exilados foram tachados de criminosos políticos, apesar de não existir condenação judicial alguma. Foi assim que crianças, mulheres e homens pobres se viram ao léu a mais de quatro mil quilômetros de distância de sua terra natal.

A pesquisa sobre o tema é do historiador da Universidade Federal do Acre (UFAC) Francisco Bento da Silva, que realizou uma tese de doutorado sobre o assunto pela Universidade Federal do Paraná em 2010 e, no ano passado, lançou o livro Acre, a Sibéria Tropical. Ele conta que, nos dois casos (1904 e 1910), a motivação para a expulsão dessas pessoas das terras fluminenses envolviam variáveis complexas.

TRATADO

O estado do Acre virou parte do Brasil em 1903, quando foi assinado o Tratado de Petrópolis com a Bolívia. Mesmo quando ainda pertencia ao país vizinho, a região já vinha sendo ocupada paulatinamente por brasileiros. O território era rico em borracha natural, isolado e vazio demograficamente.

PESQUISA

O historiador Francisco Bento da Silva relata que teve um primeiro contato mais efetivo com a história dos desterrados quando em um jornal antigo do Acre leu uma matéria falando sobre a chegada de “quebra lampiões” (outro termo genérico para se referir aos revoltosos) na região. “Em 2004, ocorreu um boom de publicações e matérias sobre a Revolta da Vacina, que de maneira muito simplificada falavam de pessoas desterradas para o Acre. Passei então a pesquisar cada vez mais sobre o assunto”. Em 2013, ele adaptou a tese de doutorado para o livro Acre, a Sibéria tropical. Informações chicobento_ac@yahoo.com.br.

REPÚBLICA

Governo autoritário anistiou só “gente graúda”

O pesquisador Francisco Bento da Silva afirma que o autoritarismo foi uma marca muito presente durante a Primeira República no Brasil, período também conhecido como República Velha. Ele explica que a nação era um país recém-saído da escravidão, com distinções de classe e cor muito visíveis, somada à falta de cidadania e direitos sociais às camadas mais pobres da população.

A própria adoção de sucessivos estados de sítio, instrumento que permitia o desterro, era um ato presidencial e a posterior anistia só atingiu gente graúda (militares de alta patente, jornalistas e políticos), as chamadas “canas miúdas” foram esquecidas no Acre após terem sido desterradas e não houve nenhuma ação para o regresso dessas pessoas aos seus locais de origem”, explica Bento.

Mesmo quem foi tecnicamente anistiado ficou à deriva. “O governo que fretou navios para desterrá-los não providenciou os seus regressos e nem deseja que voltassem. Os poucos que voltaram vieram por conta própria e com a ajuda de parentes e terceiros”, ressalta. Assim, a grande maioria jamais mais regressou ao Rio de Janeiro.

Entre elas, destacam-se as questões de ordem disciplinar, inadequações às normas sociais, como jogatinas, prostituição até a prática da capoeira, delitos leves, trabalhos informais e a vida nos cortiços. Além, é claro, dos aspectos políticos e econômicos, que levaram muitas pessoas a participarem das duas revoltas.

Segundo Bento, os desterrados formavam um grupo menor dos envolvidos nos dois conflitos. “Algumas pessoas até foram desterradas sem terem participação nas revoltas, como foi o caso dos prisioneiros recolhidos na Casa de Detenção do Rio de Janeiro”, explica. A versão oficial na época foi que os desterros serviram para tirar da então capital nacional os “vagabundos e criminosos irrecuperáveis, que em muitos momentos eram manipulados por adversários políticos do governo com intuito de golpe ou fragilização da ordem estabelecida”.

O desterro dessas pessoas foi utilizado para dar um exemplo de como o governo agia e agiria diante de quaisquer revoltas”, explica o pesquisador. Todas embarcavam em navios para desembarcar na Região Amazônica.

Sem adversários

Ao ser incorporado ao Brasil em 1903, o Acre passou a ser o único território federal brasileiro administrado diretamente pela União. “Desta forma, o governo federal não teve que negociar com autoridades locais ou adversários políticos regionais”, explica Bento. Além dessa questão de ordem política, havia outros aspectos simbólicos. “O Acre era visto com a terra da riqueza da borracha, que precisava de braços para o trabalho extrativo. Além de ser um local tomado pelo vazio demográfico e de morte pelas doenças tropicais endêmicas, com uma fronteira política tensionada”, salienta o pesquisador.

A recepção dos nativos acrianos aos desterrados não foi das mais calorosas, pois a notícias na época davam conta da chegada de vagabundos e criminosos. “Essas pessoas já chegaram com forte rejeição. Foram tratadas com desconfiança e temor. Muitos certamente tiveram que, nos anos seguintes, refazer suas identidades e esconder o passado de desterrados.”

Capital era palco dos protestos

Foram duas revoltas que envolveram múltiplos sujeitos e interesses. A chamada Revolta da Vacina ocorreu em novembro de 1904, tendo como estopim o projeto de lei que regulamentava a obrigatoriedade da vacinação antivariólica na então capital da República, o Rio de Janeiro. “A obrigatoriedade afetava o cotidiano de inúmeras pessoas que tinham aversão à vacinação por descrença na sua efetividade, por questões de ordem moral, religiosa e até princípios filosóficos, como era o caso dos positivistas”, diz o historiador Francisco Bento.

Ele afirma também que essa antipatia foi aproveitada pelos adversários políticos do então presidente Rodrigues Alves para insuflar a população insatisfeita com inflação alta, falta de moradias, transtornos das reformas urbanas, política de repressão aos cortiços, prostituição, vagabundagem, trabalhadores informais, entre outros.

Assim como a Revolta da Vacina não ocorreu só pela questão da vacina, a Revolta da Chibata não foi algo que ocorreu só pela questão do uso dos castigos físicos contra marinheiros, isso foi também o estopim”, afirma Bento. Em 1910, quando os marinheiros se rebelaram contra seus superiores na Armada Nacional, traziam insatisfações de longa data. Os marinheiros eram geralmente homens pobres, ampla maioria de negros e mestiços, que eram alistados à força desde o fim do Império e no início da República.

Quando os marinheiros tomaram os navios e ameaçaram bombardear a capital federal, o governo ficou acuado e negociou, para depois se vingar prendendo e matando muitos revoltosos.


Ao declarar nos dois episódios o estado de sítio, o governo teve em suas mãos amplos poderes extraconstitucionais que permitiam prisões sem mandados, provas contundentes e realizando desterros para fora da capital”, completa Bento.

Fonte : Gazeta do Povo 

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