sexta-feira, 14 de junho de 2013

FAZ MUITO TEMPO QUE ESTAMOS TRISTES ASSIM

texto do Mário Bortolotto sobre os protestos.

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FAZ MUITO TEMPO QUE ESTAMOS TRISTES ASSIM

(sobre ontem à noite. Mas não começou ontem à noite)


Existe um santo que é o São Wolfgang que tenta convencer o diabo com palavras desafiando o capeta a construir uma igreja. Este é o santo que ainda acredita no poder do convencimento a partir de argumentos. Ontem eu tava em casa escrevendo. Como sempre, com todas as cortinas fechadas, completamente isolado do mundo. É preciso ficar fora do mundo, pra tentar entender com clareza o que tá acontecendo, assim como você tem que dirigir uma peça de teatro de fora, pra poder entender a cena e ver o que realmente está acontecendo. Então essa atitude de isolamento não é como muitos podem pensar uma atitude alienada. E não é preciso estar sempre no olho do furacão pra sacar o tamanho da encrenca. Então eu tava escrevendo em casa e ouvi o barulho lá fora. E abri a janela e olhei. Tinham jogado um monte de lixo na rua dificultando o tráfego. Algumas pessoas corriam com medo, outras mais curiosas paravam pra olhar. Aí liguei a tv e vi as notícias. Li o que meus amigos estavam escrevendo. O Batata me ligou do teatro e disse que a coisa tava feia. Que teve que fechar o teatro e tiveram que cancelar a peça da Michelle pq uma rapaziada passou tocando o terror e inclusive quebraram os vidros do carro do Batata. Como eu fiz na noite do PCC (e inclusive escrevi um texto pra Folha de São Paulo), simplesmente vesti minha roupa e fui pra rua ver na real o que tava acontecendo. Subi a Frei Caneca quase deserta e totalmente atulhada de lixo. O único bar que ficou aberto foi o da esquina da Paim (ninguém ia ter a manha de tentar depredar aquele bar com a rapaziada que frequenta ali, sabe como é que é). Cheguei no teatro, bati na porta, o Batata abriu e eu entrei. Mó clima de funeral. As pessoas discursavam a favor e contra a manifestação. E também a favor e contra a repressão. Fico imaginando se é assim mesmo, tão simples. Ou se como em 64, vamos todos marchar com as senhoras na luta com a família com Deus pela Liberdade acreditando que estamos mesmo do lado certo e rezando pelo Deus verdadeiro. A história é simples. É um direito do cidadão se manifestar. O que eu pergunto é se esse cidadão bem intencionado não está sendo apenas e tão somente usado por um interesse politico muito maior e que ele não está se dando conta. Sempre há interesses políticos por trás de tudo. E são esses interesses é que valem no final. O cara morrendo no Vietnã com o retrato da namorada e acreditando que estava morrendo pelo seu país, ou no Iraque ou em qualquer merda de guerra que for. Marighela costumava doar 94% de seu salário para o partido e viver com míseros 6%. Ele acreditava na causa. E acreditava também quando roubava bancos na época da ditadura. Marighela morreu acreditando na sua causa. Isso o transforma num herói? Se ele matou pessoas por isso, eu acredito que não. Nunca vou transformar em herói alguém que em nome do que quer que seja se acha no direito de tirar a vida de outro. Mas Marighela tinha convicções, e isso eu admiro. As pessoas que foram pra rua (a maioria delas) também acreditam que tem convicções, e isso é bacana. Acreditar é o primeiro passo. Se não fosse o aumento de 20 centavos (é claro que esses 20 centavos são só um pretexto. É absurdo alguém ficar indignado pq pessoas estão lutando contra um aumento de 20 centavos. Acho que todo mundo já entendeu que não são pelos 20 centavos. Se eu tivesse um cachorro aqui em casa, ele estaria mordendo o meu pé por eu perder tempo explicando isso) seria outro motivo qualquer. Alguém com interesses muito maiores chegou a conclusão que esse é o momento de fazer uma manifestação contra atitudes do governo. E essas pessoas apenas querem estar no governo num futuro próximo e nada vai mudar. E vamos ficar nos lamentando pq em algum momento nós acreditamos nela. E a idéia é essa mesma. Jogar a população contra o governo. E o governo tá mais sujo que banheiro de rodoviária, né? Então é alvo fácil. Os caras fazem por merecer. Bom, eu não votei no Haddad. Eu não votei em ninguém. Podem me chamar de alienado, mas enquanto não aparecer alguém que eu confie, eu não vou mais votar. Eu não voto em partidos. Voto em pessoas. E há muito tempo nenhum político consegue me convencer. É até muito simplista falar isso, mas o que eu posso fazer? Glauber Rocha já dizia que “política e poesia é muito pra uma pessoa só”. Eu fico com a poesia, é claro. Eu acredito em poetas, mesmo quando eles mentem. Eu não acredito em políticos, mesmo quando eles falam a “verdade”. Então não tem nada a ver com polícia. A polícia é só um instrumento muito mal utilizado pelas forças repressoras, é só isso. Mas de qualquer maneira, sou sempre a favor de qualquer manifestação. Mas é claro que mandaram fechar justamente a Paulista e assim prejudicar a vida de muita gente que não tinha nada a ver com isso. Foder o transito de uma cidade como São Paulo na hora do rush, vai atrair atenção internacional. Não é pouco. Mas é o preço que se paga, né? E não é pelos 20 centavos. Alguém tá ganhando muito mais com isso e com as boas intenções de quem estava participando da manifestação e podem ter certeza que não é o estudante ou o trabalhador que vai pagar 20 centavos a menos na sua passagem de ônibus. No fim, nós estamos sempre trabalhando pra eles. Seja se manifestando ou indo contra a manifestação. No final, não somos nós que vamos sair ganhando. Lembram das manifestações pelas eleições diretas? Foi bacana. Aparentemente o povo conseguiu o que queria. E aí o Collor foi eleito. E foi o povo que colocou ele lá. Mas será que foi o povo mesmo? Que eu saiba, a máquina é bem mais poderosa que a vontade popular (que não tem muita noção de qual é o alvo real) e atira sempre armado de boas intenções. Aí a manifestação acontece, muito legítima, é claro. E o tumulto está armado. A reação estúpida da polícia agredindo pessoas. As imagens são chocantes. Alguns policiais mais sádicos devem ter se divertido com aquilo. Outros que estavam apenas trabalhando, deviam estar bem constrangidos por fazer parte disso. Mas agora a população toda vai odiar a polícia. E quem é que pode tirar a razão da população quando vc sabe que um filho seu foi agredido covardemente? Quem vai tirar a razão de ficar revoltado do fotógrafo Sergio Silva que foi atingido por uma bala de borracha e vai perder a visão? E no meio disso tudo, pessoas se ferrando de ambos os lados. Enquanto os verdadeiros responsáveis por tudo estão muito longe daqui. E podem ter certeza que eles não vão dar a cara pra bater. Nós nem sabemos com exatidão quem são os nossos verdadeiros inimigos. Então saímos atirando apenas. Seja bolas de borracha, vinagre ou quebrando carros. Nos sentimos bem fazendo parte de algo, estando do lado que nós achamos certo. Aquelas senhoras da marcha com a família em 64 achavam que estavam certas. Os caras pintadas também achavam que estavam certo. E na verdade eles estavam apoiados em suas convicções. E um homem sem convicções não é porra nenhuma. Muitos aproveitam esse tipo de situação pra provocar baderna e sair depredando tudo como aconteceu ontem. Mas esses “baderneiros” não são teletransportados da Enterprise. Eles não aparecem por acaso, eles fazem parte do elenco contratado, não se iludam. E isso, é claro, só tira a legitimidade de quem estava apenas (e coberto de boas intenções, repito) querendo se manifestar contra algo muito maior do que os benditos 20 centavos a mais. Talvez já não seja mais o tempo de São Wolfgang, infelizmente. Ninguém mais presta atenção em argumentos e no poder da palavra. As pessoas querem ação e agem indiscriminadamente e quem age indiscriminadamente costuma “errar no alvo”. Voltei pra casa com essa imagem triste na minha cabeça. De uma sombra enorme pairando sobre a Avenida Paulista. E essa sombra enorme tinha uma imagem disforme, mas era possível ver os dentes brancos aparecendo no rosto dela. Eu sei que ela tava sorrindo. Nós aqui embaixo, estamos todos muito tristes. Mas já faz muito tempo que estamos assim. Mas alguém tá rindo disso tudo. Eles sempre ganham. E no final eles vão se abraçar e sorrir pras fotos. Eles sabiam que iam vencer. 

( Mario Bortolottodois)

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