domingo, 27 de março de 2011

Vouyerismo sedutor conduz “Raiva”

Em seu primeiro livro, cineasta argentino Sergio Bizzio progressivamente descamba para o delírio

JOCA REINERS TERRON ESPECIAL PARA A FOLHA

A ficção argentina tem se afastado de seu paradigma mais conhecido, a literatura fantástica, o que bem comprova “Raiva”, primeiro romance de Sergio Bizzio (Villa Ramallo, 1956) a ser lançado no Brasil.

A produção literária do cineasta e roteirista (sua história “XXY”, dirigida pela mulher, Lucía Puenzo, obteve repercussão por aqui) tem sido prolífica, remetendo-a nesse aspecto e em outros à proverbial graforréia do compatriota César Aira (”Coronel Pringles”, 1949).

Os livros deste, além da prolificidade, quase sempre são calçados no absurdo contemporâneo.

Com Bizzio não é diferente, partindo em seus enredos de situações realistas bastante reconhecíveis para progressivamente descambar no delírio.

Em “Reality” (2007), por exemplo, um reality show é invadido por terroristas islâmicos. Contudo, e por exigência dos criminosos, o programa continua no ar.

Desse modo, em movimento inesperado, a realidade contamina com violência o absurdo midiático de exposição pública da intimidade.

Em “Raiva”, algo semelhante ocorre: primeiro, o pedreiro José María e a doméstica Rosa se apaixonam.

Agressivo, José María espanca quem dela se aproximar, como o filho do síndico de um prédio vizinho à mansão onde Rosa trabalha.

Ele perde o emprego após ser denunciado, mas assassina o capataz.

Alheia a isso, Rosa continua a recebê-lo no emprego, aproveitando viagem dos patrões. Certa noite, porém, eles voltam desavisadamente. Obrigado a se esconder no sótão, José María permanece na mansão sem que ninguém o saiba.

AMBIGUIDADES ÍNTIMAS

Aí tem início um sedutor jogo de voyeurismo que envolve o leitor, levando-o a avançar páginas em busca do desenlace.

María é subitamente aprisionado à vida secreta dos personagens da casa ao mesmo tempo que transforma sua relação anterior com Rosa em algo que não pode contar com sua intervenção.

Ele usa do telefone para falar com a namorada, mas não tem meios, ou quiçá o direito, de alterar o destino dela, descobrindo assim ambiguidades de sua face íntima, assim como de todos os outros moradores da casa.

De forte base irrealista, a ficção argentina moderna originada em Macedonio Fernández (1874-1952) e perpetrada por Jorge Luis Borges, Julio Cortázar e muitos outros, tornou-se ilusoriamente representação metonímica de toda a literatura argentina, excluindo a vertente de ordem documental surgida no “Facundo”, de Domingo Sarmiento (1811-1888), e continuada em Roberto Arlt (1900-1942).

Sergio Bizzio, assim como César Aira, representa o caminho do meio surgido nos últimos anos.

JOCA REINERS TERRON é autor de “Do Fundo do Poço Se Vê a Lua” (Companhia das Letras)

________________________________________

RAIVA

AUTOR Sergio Bizzio

EDITORA Record

TRADUÇÃO Luís Carlos Cabral

QUANTO R$ 39,90 (244 págs.)

AVALIAÇÃO ótimo

Nenhum comentário: