domingo, 27 de março de 2011

“É difícil escapar da influência dela”

A bengala ficou ali, horizontal, à beira do rio – era inútil para quem ia se atirar na água e, com aquele mergulho, não pretendia mais pisar em terra firme. Foi encontrada logo. O corpo de Adeline Virginia Stephen Woolf, no entanto, só seria resgatado do gelado Ouse (Rodmell, Inglaterra) três semanas depois daquela manhã de sexta-feira, 28 de março de 1941, quando, pedras nos bolsos do casaco de pele, ela pôs um ponto final na própria história. Tinha 59 anos – nascera em Londres, no dia 25 de janeiro de 1882 – e uma das obras ficcionais mais poderosas do século 20, considerando o seu ou qualquer idioma. Mas havia uma guerra lá fora e outra dentro de si. Capitulou. Adeus às armas – o marido Leonard Woolf, a irmã Vanessa (escreveu uma carta de despedida a cada um), a literatura.

É com o suicídio de Virginia Woolf que o americano Michael Cunningham abre o romance As Horas. O livro gira seus ponteiros em torno de três mulheres: Virginia, enquanto escreve Mrs. Dalloway, que originalmente se chamava As Horas (com frequência ela trocava os títulos de suas obras); Laura Brown, que lê Mrs. Dalloway; e Clarissa Vaughn, uma Dalloway da atualidade. Premiado com o Pulitzer de 1999, As Horas foi levado ao cinema em 2002, dirigido por Stephen Daldry, com Nicole Kidman como Virginia (o papel lhe rendeu o Oscar), Julianne Moore (Laura) e Meryl Streep (Clarissa).

“Difícil imaginar escritores contemporâneos que não sejam influenciados por Woolf”, diz Cunningham na entrevista a seguir, concedida por e-mail. É uma distinção que, ponderado, estende ao irlandês James Joyce, mesmo admitindo que Virginia não aprovaria isso. Acompanhe.

Os primeiros romances de Virginia Woolf são, como o senhor mesmo afirma, “relativamente convencionais”. Mas é possível encontrar neles traços que persistiram em alguns de seus romances mais ousados do ponto de vista formal? Quais?

De fato, você pode detectar traços do brilho da autora nos dois primeiros romances, A Viagem (1915) e Noite e Dia (1919), mas com sutileza. Nas duas obras Woolf estava fazendo o possível para disfarçar seu talento verdadeiramente inovador e experimental. Ela temia, desde o começo, sofrer de desequilíbrio mental que fosse lhe impedir de escrever. Aqueles dois livros foram escritos, de certa forma, numa tentativa de provar que ela era capaz de escrever romances. As suas tentativas de parecer “normal” nas duas primeiras obras levou ainda em conta o fato de que seu editor era o meio-irmão George Duckworth, que a havia molestado quando a autora tinha 12 anos. Acho que ela queria, talvez inconscientemente, mostrar a Duckworth que ele não havia lhe causado dano, que ela poderia escrever romances tal como outras pessoas que não haviam sofrido traumas de infância. Depois da publicação dos primeiros dois livros, ela e seu marido Leonard se mudaram para Richmond, um subúrbio de Londres, e instalaram uma gráfica no porão para que pudessem publicar por conta própria as obras de Virginia. Tendo provado a si mesma que poderia escrever de maneira convencional, e livre de George Duckworth, ela se soltou. Começou assim seu grande período. O primeiro livro publicado pela gráfica, chamada Hogarth Press, foi um romance memorável, O Quarto de Jacob e, depois dele, veio Mrs. Dalloway. Woolf nunca mais tentou escrever de maneira bem-comportada.

O senhor acredita que toda ficção que mereça ser lida passa pela biografia do autor? No caso da narrativa de Virginia Woolf, cujos indícios autobiográficos são fortíssimos, o senhor diria que certos elementos de sua infância ocupam o lugar principal?

É sempre difícil avaliar se há muito ou pouco conteúdo autobiográfico no trabalho de um romancista. E não ajuda quando o escritor já morreu, não pode esclarecer nossa dúvida. Todos os romances são, até certo ponto, autobiográficos porque o escritor ou escritora deve usar sua experiência, ainda que fortemente disfarçada. A experiência vivida por um autor é o que ele conhece do mundo. Ele não pode escapar de usá-la como fonte. Suspeito que o abuso sofrido na infância afetou a disposição de Woolf de escrever sobre sexo – no caso, a sua indisposição. Em toda a sua obra, só há dois beijos românticos, um em A Viagem e outro em Mrs. Dalloway. Depois disso, não há interação sexual de espécie alguma, nem mesmo um beijo. Ela disse, numa carta, que deveria escrever mais sobre sexo – mas simplesmente não conseguia.

O senhor entende que o inconformismo de Virginia Woolf com as restrições que sofreu em relação à educação formal – enquanto os irmãos iam para a universidade – teria contribuído decisivamente para suas preocupações com a condição da mulher?

Woolf sempre se sentiu prejudicada pela falta de educação formal e, sim, o fato de que os irmãos foram mandados para a universidade, e ela e a irmã Vanessa não, contribuiu, certamente, para as suas convicções feministas. Ela passou a vida toda lendo obsessivamente, tentando compensar o que sentia como falta de educação escolar. É possível que, ao longo dos anos, ela tenha se educado melhor do que os meios-irmãos.

Virginia não suportava terminar um livro. Foi parar em uma casa de saúde às vésperas de seu primeiro romance, A Viagem, ser publicado. Quando se suicidou, tinha terminado, havia pouco, Entre os Atos – que só sairia postumamente -, e pensara em interromper o processo de edição da obra por considerá-la ruim. É como se escrever fosse algo que jamais deveria alcançar o fim. Como o senhor contrabalançaria a insegurança e o perfeccionismo da autora?

Woolf sempre ficava decepcionada com os romances concluídos. Mas esta é uma reação de muitos romancistas, até nós que não temos o gênio e a determinação de Woolf. Ela, como muitos de nós, tinha na cabeça o impossível grande romance, o romance que poderia conter tudo o que ela sabia ou imaginava. Mas os resultados, ainda que magníficos, sempre lhe deram a impressão de ficar aquém da expectativa. Ela era, certamente, uma perfeccionista mais determinada do que a maioria de nós, e ficava profundamente traumatizada pelo que considerava o fracasso de cada livro que publicava. Uma das razões – e apenas uma – que a fez cometer o suicídio foi a convicção de que seu último romance, Entre os Atos, era um desastre completo.

Como o senhor avalia o resultado da leitura de Ulisses, de James Joyce, por Virginia Woolf? Autores como John Lehmann – que foi sócio de Leonard Woolf na Hogarth Press e escreveu uma breve biografia de Virginia – admitem que ela e o marido teriam lido manuscritos da célebre obra do irlandês em 1918, quatro anos antes de sua publicação.

Woolf alegava que Joyce, em Ulisses, estava apenas se exibindo; que Ulisses representava, de certa forma, uma demonstração egoística da libertinagem de Joyce – e não era um romance bem-sucedido. Você poderia dizer que ela acreditava que Ulisses não era mais do que a tentativa de Joyce de provar ao mundo que poderia escrever Ulisses. Suspeito que ela também sentiu desconforto com o sexo em Ulisses, embora nunca tenha feito essa afirmação. Woolf tinha problemas profundos com sexo. E provavelmente não era a melhor leitora de um romance com descrições tão gráficas de sexo como Ulisses.

O senhor identifica autores de hoje com forte carga de influência de Virginia Woolf?

Difícil é imaginar muitos escritores contemporâneos que não sejam influenciados por ela. OK, vamos ter que incluir Joyce nessa categoria, apesar de a Virginia estar se revirando no túmulo quando digo isso. Woolf e Joyce, juntos, são os maiores modernistas, e muito do que introduziram na literatura se tornou parte do gênero desde então. Eles escreveram sobre personagens que parecem ordinários, ao contrário de heroicos. Eles insistiam que cada pessoa embarcava na sua própria viagem épica, ainda que a vida da maioria, vista de fora, parecesse consistir em trabalho e casamento, saídas triviais e sestas. Todo autor que escreve sobre “pessoas comuns”, quer dizer, 99,9% das pessoas, foi influenciado por Woolf e Joyce. Eles removeram o narrador da história. Antes de Woolf e Joyce, os romances eram contados de maneira constrangida pelo narrador. Woolf e Joyce simplesmente mergulharam o leitor na trama e nas mentes dos personagens. Nada de “Sente-se, gentil leitor, e vou lhe contar uma história”. O leitor está imerso na ação e tem que encontrar seu próprio caminho dentro dela. Eles elevaram a linguagem na ficção de uma tal forma que a beleza, a musculatura e a complexidade das frases importava quase tanto quanto a informação contida nelas. Muitos autores antes de Woolf e Joyce escreveram muito, muito bem, mas eles não pensavam realmente na semelhança que a linguagem do romance poderia ter com a linguagem da poesia. Qualquer autor contemporâneo que capricha no som de uma frase, nas suas qualidades musicais, tem uma dívida com Woolf e Joyce.

Em By Nightfall, o senhor escolheu escrever, como Virginia, sobre pessoas abastadas. Como contrapõe a insegurança que diz sentir como escritor a um elenco de personagens que podem não despertar empatia no leitor?

By Nightfall é, de fato, sobre gente rica. Meus outros romances não são. De livro para livro, a gente escolhe tipos distintos. Meu próximo romance faz companhia, de certa maneira, a By Nightfall, porque se concentra em gente que não tem dinheiro algum e vive num mundo bem diferente.
 COLABOROU LÚCIA GUIMARÃES, DE NOVA YORK

Rinaldo Gama – O Estado de S.Paulo

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