domingo, 6 de fevereiro de 2011

O México profundo nas imagens de um autor, Juan Rulfo

As paisagens áridas sugeridas por Pedro Páramo, monumento literário da América espanhola, são traduzidas pelo escritor mexicano num belo livro que reúne suas 100 melhores fotografias


Ao escritor mexicano Juan Rulfo (1917-1986) se deve a mais completa série de estudos etnográficos sobre as populações indígenas do México. E também algumas das mais belas fotografias que retrataram essas culturas, lado menos conhecido do autor do livro Pedro Páramo, o grande monumento literário moderno mexicano do século 20. Parte da enorme coleção de negativos deixados por Rulfo, construída durante os vários anos em que, entre outras lutas, militou pela causa indigenista no México, foi selecionada para o livro 100 Fotografias: Juan Rulfo, que a Cosac Naify lança em parceria com a Editorial RM do México, com ensaios do diretor da fundação que leva o nome do escritor, o arquiteto e historiador Víctor Jiménez, do curador independente Andrew Dempsey e do jovem historiador e curador italiano Daniele de Luigi, os dois últimos responsáveis pela seleção das 100 fotos que aparecem no livro.



Rulfo publicou as primeiras fotos em 1949, na revista América, realizando sua primeira exposição apenas em 1960, em Guadalajara. Discreto e criterioso, ele só começou a ficar conhecido como fotógrafo após uma grande exposição realizada no Palácio de Belas Artes da Cidade do México, em 1980, acompanhada de um catálogo, Homenaje Nacional, seis anos antes de sua morte. Este seria transformado num livro, Inframundo, que chegou às mãos da crítica e ensaísta norte-americana Susan Sontag (1933-2004), autora de um livro fundamental sobre fotografia e do prefácio da segunda tradução inglesa de Pedro Páramo. De lá para cá outros livros foram publicados sobre sua obra fotográfica, entre os quais Juan Rulfo, Letras e Imágenes (2002), em que é explorada a relação entre literatura e fotografia na obra do escritor.



Ruínas. No livro que está sendo lançado, esse é um aspecto igualmente lembrado, mas é na tragédia da infância de Rulfo que os curadores vão buscar explicações para o aspecto desolador de suas ruínas, de seus desamparados camponeses e da desértica paisagem mexicana. O curador Andrew Dempsey diz que a chave para decifrar essa terra devastada – tão bem descrita em Pedro Páramo, homem frustrado por um amor impossível, vivendo num território fantasmagórico – é mesmo a tragédia enfrentada por Rulfo quando criança. O pai morreu assassinado quanto ele tinha 6 anos – e esse choque é traduzido, em Pedro Páramo, pela loucura de Susana, a paixão juvenil do narrador onisciente, uma morta-viva quando reaparece em Comala, viúva de Florêncio e enlouquecida pelo assassinato do pai.



Rulfo dizia ser difícil reconhecer no território de Jalisco – que abriga a cidade de San Gabriel, onde o escritor passou a infância – traços dos personagens de seus livros, porque as pessoas de Pedro Páramo “não têm cara e só por suas palavras se adivinha o que foram”. Claro, estão todos mortos. A morte está em toda a parte no livro e é com ela que começa a narrativa, a de um morto contando sua história a outros mortos num tempo congelado na memória de seu protagonista. Olhando as fotos do livro, é a mesma impressão que castiga a retina do leitor com esse tempo circular em que tudo se repete, revelando uma paisagem imutável, silenciosa e árida, o próprio território da morte.



Núcleos. Dividido em quatro núcleos temáticos, o livro 100 Fotografias: Juan Rulfo, começa com a foto de uma pirâmide de Cempoala, em Vera Cruz, tirada na década de 1950, que marca o capítulo inaugural, dedicado à arquitetura. Mais que o registro documental do passado arquitetônico dos primeiros povos do México, há um drama épico sugerido pelas imagens dessas ruínas de civilizações esmagadas pelo estrangeiro, que levou o ouro do México, deixando desamparadas as comunidades indígenas. Rulfo dizia que essas populações vivem fechadas num hermetismo ancestral que repudia a intromissão de estranhos e é justamente o que se vê no segundo núcleo temático, dedicado aos vilarejos rurais, de camponeses paupérrimos que tanto inspiraram Pedro Páramo (1955) como os contos de Chão em Chamas (1953) – ambos traduzidos por Eric Nepomuceno e publicados pela Record na versão mais recente, de 2004.



O terceiro núcleo temático traz as fotos do começo da carreira do fotógrafo Rulfo, nos anos 1940, paisagens que remetem ao gigantismo de Ansel Adams ou, ainda mais, à composição formal de Edward Weston. Por certo, Rulfo já tinha um olhar educado quando comprou sua Rolleiflex seis por seis, que acabou perdendo. Conhecia bem os fotógrafos estrangeiros e os de seu país – e a forma como se aproxima das camponesas com seus trajes tradicionais e da paisagem mexicana deve muito a Manuel Álvarez Bravo.



Finalmente, no último núcleo, o próprio Bravo surge como personagem entre os amigos do escritor-fotógrafo, além de pessoas de sua família, como a mulher Clara Aparício e sua filha Cláudia, nascida em 1951, três anos após seu casamento. São quase todas fotos dessa mesma década, quando as excursões de Rulfo começaram a ficar mais curtas por conta dos compromissos assumidos com a literatura – especialmente por causa das sucessivas bolsas de estudo concedidas pelo Centro Mexicano de Escritores, fundado pela americana Margaret Shedd (fotografada no último núcleo do livro). Foi ela a figura determinante para que Rulfo publicasse tanto O Chão em Chamas como Pedro Páramo, transformando-o no escritor mexicano mais conhecido fora de seu país, admirado por colegas como o argentino Jorge Luis Borges e o colombiano Gabriel García Márquez.



Foi de García Márquez o maior elogio que Juan Rulfo recebeu. A imprensa cobrava muito de Rulfo uma outra novela depois de Pedro Páramo, mas ele não tinha pressa nem perseguia a fama. “Se eu fosse autor de Pedro Páramo, para mim o mais importante e belo dos romances escritos em língua castelhana, não me preocuparia nem voltaria a escrever jamais em minha vida”, disse o Nobel de literatura de 1982, tido como o criador do realismo mágico, do qual Rulfo foi precursor. Rulfo escreveu um pequeno segundo romance, O Galo de Ouro, esboçado em 1956 e filmado por Roberto Gavaldón em 1964, contando a história de um pobre camponês com sorte na briga de galos que é contratado por um ricaço, ambos apaixonados pela mesma mulher. Há uma segunda versão dirigida pelo iconoclasta Arturo Ripstein (El Imperio de la Fortuna, de 1986).



Cinema. Há quem defenda que Rulfo concebeu Pedro Páramo como um filme. A elipse narrativa do romance, que tanto incomodou os críticos na época do lançamento, reproduziria, em termos literários, artifícios da montagem cinematográfica – e ele foi supervisor das salas de cinema de Guadalajara, o que facilitou seu ingresso nesse universo, para o qual contribuiu como roteirista, crítico e consultor histórico (do filme La Escondida, de 1955, dirigido por Roberto Gavaldón, o mesmo da primeira versão de O Galo de Ouro). De qualquer modo, Rulfo não gostava das adaptações de seus textos para o cinema – e Pedro Páramo teve quatro versões, sendo a primeira de 1966, dirigida por Carlos Velo. A última tentativa foi feita há dois anos por outro espanhol, Mateo Gil.



Muitas fotos no livro de Rulfo parecem fragmentos de filmes. A principal delas é a de uma mulher caminhando com uma menina pelas ruas de Mexicaltzingo, Estado do México, em 1960. Lembram – e muito – as imagens que o célebre fotógrafo Gabriel Figueroa (1907-1997) criou para os filmes mexicanos de Buñuel (Os Esquecidos, Nazarín, Simão do Deserto) e também para a primeira versão de Pedro Páramo, que fotografou para Carlos Velo. Figueroa, criado como ele num povoado mexicano, manipulava a luz de forma arquitetônica, enquadrando seus personagens em figuras geométricas projetadas pela sombra, de maneira quase alegórica, como se os “olvidados” mexicanos estivessem confinados, sendo ao mesmo tempo iluminados e destruídos pelo escaldante sol dos áridos povoados mexicanos.



Também nas fotos de Rulfo, a aparição de signos cristãos encontram correspondência nas ruínas zapotecas ou barrocas que emergem com a luz teofânica das imagens (Rulfo teve formação católica e começou a ler na biblioteca de um padre). Como lembra o historiador Víctor Jiménez, “ele fez diversas fotos de portas de igrejas com pessoas que se aproximam ou que delas se afastam”, calculando o “possível efeito simbólico” desses gestos. Afinal, antes de tudo, eles revelam a ambivalente relação dos mexicanos com o cristianismo imposto pelo conquistador.

Antonio Gonçalves Filho – O Estado de S.Paulo.05/02/2011

Nenhum comentário: