quarta-feira, 28 de abril de 2010

«O HORROR ECONÓMICO [6]




[...] A indiferença é feroz. Constitui o partido mais activo e sem dúvida o mais poderoso. Permite todas as arbitrariedades, os desvios mais funestos e mais sórdidos. Este século é um trágico testemunho disso.

Obter a indiferença geral representa, para um sistema, uma vitória maior que qualquer adesão parcial, ainda que considerável. E é, de facto, a indiferença que permite as adesões maciças a certos regimes; das consequências disso sabemos nós.

A indiferença é quase sempre maioritária e desenfreada. Ora, estes últimos anos foram, à sua maneira, campeões da inconsciência plácida face à instalação de um domínio absoluto; campeões da História camuflada, dos avanços despercebidos, da desatenção geral. Desatenção tal que nem foi registada. Desinteresse, deficiente observação, obtidos sem dúvida graças a estratégias silenciosas, obstinadas, que insinuaram lentamente os seus cavalos de Tróia e souberam alicerçar-se tão bem sobre aquilo que propagam – a falta de qualquer tipo de vigilância – que foram e continuam a ser indetectáveis e por isso mais eficazes.

Tão eficazes que as paisagens políticas e económicas puderam metamorfosear-se à vista de todos (mas sem que ninguém o soubesse) sem despertar a atenção e muito menos a inquietação. O novo esquema planetário, passando despercebido, pôde invadir e dominar as nossas vidas sem ser tomado em conta, a não ser pelas potências económicas que o lançaram. E cá estamos num mundo novo, dirigido por essas potências segundo sistemas inéditos, e no seio do qual, agindo e reagindo como se de nada se tratasse, continuamos a sonhar em função de uma organização e de uma economia que deixaram de funcionar.

O desapego e a letargia obtiveram tal preponderância que, se nos propusermos hoje, contra o que é vulgar, a impedir qualquer processo político ou social, qualquer pirataria “politicamente correcta”, descobriremos que, enquanto dormitávamos, foram longa e minuciosamente elaborados, a montante, os projectos que queremos combater; inscreveram-se de forma sólida e são os únicos em conformidade com os princípios; de tal forma que surgem enraizados, inelutáveis e até por vezes muito calmamente instalados nos factos!

Tudo foi montado muito antes de intervirmos (ou pensarmos intervir). Até o sentido do nosso protesto foi já esvaziado. Nem sequer nos encontramos diante do facto consumado: estamos já aferrolhados dentro dele.

A nossa passividade deixa-nos nas malhas de uma rede política que cobre por inteiro a paisagem planetária. Não se põe tanto a questão do valor positivo ou nefasto da política que presidiu a esse estado de coisas, mas o facto de um tal sistema ter podido impor-se como um dogma sem ter provocado turbulência ou suscitado comentários, a não ser raramente e tarde de mais. No entanto, ocupou tanto o espaço físico como o espaço virtual, instalou a prevalência absoluta dos mercados e das suas oscilações; soube confiscar como nunca as riquezas, e escamoteá-las, pô-las fora do alcance ou até anulá-las sob forma de símbolos, por sua vez núcleos de tráficos abstractos, subtraídos a quaisquer trocas além das virtuais.

[...]

A origem do perigo não é tanto a situação – ela podia ser modificada –, mas mais precisamente a nossa aquiescência cega, a resignação geral face ao que nos apresentam em bloco como inelutável. [...]

O sistema liberal actual é flexível e transparente, o bastante para se adaptar às diversidades nacionais, mas bastante “mundializado” para as confinar pouco a pouco ao campo folclórico. Severo, tirânico, mais difuso, pouco detectável, expandido por toda a parte, esse regime que nunca foi proclamado detém todas as chaves da economia, que reduz ao domínio dos negócios, os quais se apressam a absorver tudo o que ainda não pertença à sua esfera.

[...]

As armas do poder? A economia privada nunca as perdeu. Por vezes vencida ou ameaçada disso, soube conservar, mesmo nessas ocasiões, os seus instrumentos, em particular a riqueza e a propriedade. A finança. Sempre que, temporariamente forçada, teve necessidade de renunciar a certas vantagens: essas vantagens foram sempre muito inferiores àquelas de que não abdicou.

Mesmo nos momentos de derrotas mais ou menos passageiras, nunca deixou de minar as posições do adversário com uma tenacidade sem igual, e de resto muito valorosa. Foi talvez nessas alturas que deu provas de melhores recursos. Ocasionalmente, alimentou-se dos seus revezes, sabendo fazer-se esquecida, camuflar-se enquanto polia como nunca as armas conservadas, ao mesmo tempo que aperfeiçoava as suas pedagogias, consolidando as suas redes. A sua ordem sempre perdurou. O modelo que representa pôde ser negado, espezinhado, desprezado, ao ponto de parecer afundar-se – mas estava apenas suspenso. O predomínio das esferas privadas, das suas classes dominantes, restabeleceu-se sempre.

Porque o poder não é o poderio. Ora o poderio (que não quer saber dos poderes, os quais, na maior parte das vezes, ele próprio outorgou e delegou, a fim de melhor os gerir) nunca mudou de campo. As classes dirigentes da economia privada perderam algumas vezes o poder, mas nunca o poderio, esse poderio que Pascal designa sob o termo de força: “O império baseado na opinião e na imaginação reina algum tempo e esse império é suave e voluntário; o da força reina sempre. Assim, a opinião é como a rainha do mundo, mas a força é o seu tirano.” [...]»



Viviane Forrester



[in O Horror Económico: Lisboa, trad. Ana Barradas, Terramar, 1997;

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