terça-feira, 27 de agosto de 2019

O avúnculo e o vernáculo


   
Pegar uma linha indicaria nada mais do que segurá-la. Mas pegar da linha implica que ela será utilizada


Há algumas semanas, em uma troca de e-mails com João Ubaldo Ribeiro (infelizmente não costumo usufruir de sua inteligência nesse contexto privado: a troca se deu por conta de uma entrevista que eu faria com ele), o autor de “Viva o povo brasileiro” empregou a palavra “avúnculo”, que me obrigou a visitar “o pai dos burros”. Eis uma tarefa que cumpro com prazer na língua portuguesa; mas, e esse é o tema dessa coluna, como leitor de literatura brasileira contemporânea, é rara a oportunidade de uma tal visita. Diferente do que se passou com nossos escritores desde o século XIX, e radicalmente no modernismo de 1922, os escritores
contemporâneos não têm, em certo sentido, uma relação forte com o idioma vernáculo.

Apresso-me a esclarecer a última frase. É claro que todo escritor merecedor desse nome (os Chalitas não valem) tem uma relação forte com a sua língua. O grande filólogo Evanildo Bechara, autor da clássica “Moderna gramática portuguesa”, costuma dar a seus alunos um exemplo iluminador da intimidade de um escritor com sua língua: “Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser”, lê-se no conto “Um apólogo (A agulha e a linha)”, de Machado de Assis. Pegar uma linha indicaria nada mais do que segurá-la. Mas pegar da linha implica que ela será utilizada. “É impressionante como os bons autores aproveitam todas as faculdades da língua”, observa Bechara (retirei essa passagem do brilhante e comovente perfil de Bechara publicado na revista “Piauí”). A relação que os escritores brasileiros cont e m p o r â n e o s não têm com a língua portuguesa é, portanto, de o u t r a o r d e m . Não costuma haver, entre eles, grande curiosidade lexical; acusações recíprocas, outrora frequentes, de galicismo, anglicismo ou barbarismo são completamente ausentes de suas conversas; não costumo ler, em suas eventuais entrevistas, passagens que evidenciem um conhecimento aprofundado da gramática portuguesa. Durante o período de transição para a nova ortografia, pós-reforma, não me lembro de ler muitos escritores manifestando suas posições (houve exceções, como o poeta Alexei Bueno, que me enviou um veemente — e justo — manifesto contra a retirada do acento agudo em “pára”, do verbo parar; mas Alexei é, sob muitos aspectos, extemporâneo, e não por acaso um grande leitor de Euclides da Cunha).

Essa ausência não é, no meu entender, uma perda, mas antes sintoma de uma conquista (de resto, óbvia). A relação dos escritores brasileiros românticos, modernistas e regionalistas com a sua língua era determinada pela questão identitária da nação, questão premente, como se sabe, para a arte e o pensamento de nosso jovem e colonizado país. Mas essa questão identitária se tornou esvaziada por superação: depois de Machado (que equacionou o problema como nenhum outro em seu tempo: como no dito espirituoso de
Gibbon, não precisou de camelos para ser árabe), Drummond, Rosa, João Cabral e Clarice, depois da grandeza e singularidade incontestávei desses feitos da língua, já não havia a necessidade, por parte da literatura brasileira, de se colocar a questão de sua própria originalidade.

Com efeito, o concretismo já é um movimento estético e teórico absolutamente destituído dessa preocupação; para o concretismo, já não se trata de pensar a identidade e o idioma nacionais, de fundálos em traços típicos da formação social do país, mas sim de expor amplamente a literatura brasileira ao contato das literaturas de diversas tradições, a fim de, por meio de um choque de cosmopolitismo, exigir que ela esteja à altura das experimentações e reflexões contemporâneas. É por isso que a partir desse momento o interesse dos escritores brasileiros pela língua portuguesa praticada no Brasil — isto é, pela língua como instrumento de colonização e, ao mesmo tempo (pelas mudanças que a formação social brasileira lhe infligiu),
como atestado de identidade própria — desaparece q u a s e q u e completamente. Gonçalves Dias escreveu um léxico do tupi; Monteiro Lobato participava ativa e furiosamente de questões relativas a reformas ortográficas e estabelecimento da norma culta; Euclides da Cunha e s c re v e u e s s e monumento da língua portuguesa que é “Os sertões”; Mário de Andrade projetou a escrita de uma “Gramatiquinha da fala brasileira” — enquanto hoje o pensamento sobre a língua costuma restringir-se a gramáticos e filólogos, e esses não costumam sequer fazer parte do rol de leituras dos escritores contemporâneos.

Há, é claro, exceções. Talvez a mais notável entre elas, nestes últimos 30 anos, seja o romance “Viva o povo brasileiro”, de João Ubaldo Ribeiro (não por acaso citado por mim na abertura). João é formado no ethos sessentista, quando a questão Brasil teve seu último momento intenso e coletivo de formulação (Glauber, Zé Celso, o tropicalismo etc. etc.). Do mesmo modo, Caetano Veloso costuma se pronunciar sobre questões relativas à língua portuguesa, e José Miguel Wisnik discutiu, aqui nesse espaço, a recente polêmica envolvendo um livro didático adotado pelo MEC (que ficou conhecida como o caso “nós pega os peixe”).

Para a minha geração, contudo, o problema do Brasil, assim como da língua portuguesa aqui praticada, é antes de destino do que de origem. Nossa singularidade está dada, e só quer descartá-la quem é ruim da cabeça — ou doente do pé.

Francisco Bosco. 07 Sep 2011

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