quarta-feira, 5 de junho de 2019

Reflexões sobre a tragédia




As tragédias são sempre uma grande oportunidade para a reflexão e transformações. Nem sempre isso acontece. As vitimas apenas sofrem e os cínicos oportunistas, como os predadores e carniceiros, estão sempre à espreita de oportunidades! No Brasil, criaturas dessa qualidade são sempre os representantes das mais elevadas e nobres causas! Estão sempre de prontidão com o seu inesgotável repertorio discursivo da cartilha politicamente correta de idéias, ideais, propostas, projetos, estudos, pesquisas, tudo no balcão a disposição, prontos para serem negociados no momento oportuno. Ele chegou no ultimo dia 07, pelas mãos de um jovem infeliz cheio de ódio e balas! Desde então muito já foi dito e especulado sobre esse rapaz e as suas razões, por incontáveis especialistas e oportunistas. Vou mudar o foco, vou falar das conseqüências políticas. Domínio por excelência das nobres virtudes, campo das grandes propostas, projetos, idéias e, sobretudo, dos elevados recursos públicos! Essa é a questão, simples assim, recursos financeiros e capital político, apenas!

No ápice da comoção, no estupor causado pela tragédia é que os especialistas em “mobilizar”, sobretudo, recursos financeiros, se organizam em torno de interesses comuns pouco ortodoxos. Nessas oportunidades, em defesa das nobres causas - bem comum, interesse público, direitos - grupos especializados ligados a setores políticos envidam todos os meios e esforços – subsídios, incentivos, apoio, recursos públicos. A excepcionalidade da tragédia impõem medidas de exceção, proporcionando facilidades e/ou desobrigando os administradores dos recursos públicos e os seus “parceiros” de se submeterem a determinadas exigências técnicas ou legais. O “calcanhar de Aquiles” da trama, porem, não é a tragédia, é a tradição. Assim, se supõem que determinados grupos e/ou extratos sociais dispõem de prerrogativas morais, desígnios superiores inerentes a própria condição de classe, profissão, confissão ou tradição lhe asseguram idoneidade, lisura, honestidade, integridade, confiança. Insuspeitos, estão dispensados de submeterem-se a controles ou fiscalização. Conforme sejamos avessos a universalidade e impessoalidade das regras, submeter-se representa uma perseguição constrangedora!

A nossa tradição determina uma maior tolerância com determinados grupos e/ou extratos sociais sob certas circunstancias e em algumas ocasiões. A indistinção entre publico e privado se estende a indiferença da sociedade ao patrimônio público, complementando, naturalmente, a dispensa à fiscalização e o controle. A base de sustentação dessa urdidura, em termos de assegurar legitimidade, se dá na cooptação de amplos setores sociais – sociedade civil, iniciativa privada, setores políticos, administração pública. A capilarização do esquema garante maior complexidade na medida em que se compartilham, alem de interesses,  responsabilidades.  

A tradição determina parâmetros estabelecidos por vínculos de confiança e lealdade entre os envolvidos para alem das afinidades e interesses. A despeito do maior envolvimento de setores sociais - isso se explica, de um lado por exigências de legitimidade impostas pelo contexto democrático e, de outro para garantir a adesão popular - não são democráticos, não agregam, são restritos e fechados. Nesse sentido, não se renovam, nem os grupos e/ou extratos sociais, tampouco as suas práticas, ao contrário, perpetuam-se.  Sempre os mesmos, sempre mais do mesmo, reciclados ou adaptados - exercício de aperfeiçoamento das aparências, perfumaria, tautologia -, conforme as tendências estabelecidas pela cartilha politicamente correta, o gosto pela indolência intelectual e a mediocridade política. A incorporação de outros grupos ou setores sociais e políticos se dá de acordo com necessidades ou interesses, sendo valorizados como pontos de apoio para sustentação, acesso e manutenção dos canais de acesso ao poder e ao fundo público.

Os movimentos sociais não são toda a sociedade - muito menos o povo! -, a expansão da sociedade civil organizada não corresponde à maior participação popular, o incremento das políticas sociais e instituições democráticas não asseguram o exercício da cidadania, o constitucionalismo nominal não representa maior adesão à democracia e o maior volume de investimentos e recursos não garante a qualidade e a eficácia das políticas públicas.  A tradição é a tragédia.

Mario Miranda Antonio Junior
Sociólogo – FESPSP.Pós em Direitos Humanos – USP



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