Trecho inédito do livro "A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal", de Christian Laval e Pierre Dardot
Posted on 14/04/2016 // 4 Comments
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Desembarca no Brasil em boa e dramática hora o ensaio desbravador dos franceses Pierre Dardot e Christian Laval sobre a sociedade neoliberal. Passando a limpo todos os lugares comuns sobre o que é o neoliberalismo, A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal faz uma arqueologia das ideias e práticas que moldaram essa singular forma de racionalidade de governo para nos colocar diante dos impasses mais candentes da esquerda hoje. O enfoque no neoliberalismo como uma racionalidade permite vislumbrar, para além do processo mais visível de privatizações, a corrosão interna da própria dimensão pública e democrática dos Estados nacionais, à direita e à esquerda no espectro político institucional. “O livro constitui um roteiro espontâneo para ler a atual situação brasileira. Nesta semana estamos vendo a presidenta ser julgada como se fosse uma gerente que geriu mal o país, que não apresentou resultados e lucros à empresa-Brasil, como um diretor que é mandado embora de uma empresa por não ter atingido metas.” Foi assim que o psicanalista Christian Dunker abriu uma de suas intervenções no debate de lançamento do livro em São Paulo esta semana – em breve, publicaremos a gravação integral do evento na TV Boitempo. Neste contexto, o Blog da Boitempo publica um trecho inédito do último capítulo do livro em que os autores discorrem sobre a urgência de se pensar uma nova forma de governamentalidade (conceito recuperado de Foucault) que se coloque à altura do impasse neoliberal. Boa leitura!
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Por Christian Laval e Pierre Dardot.
A nova razão do mundo propõe um tremendo desafio à esquerda: não podendo contentar-se com uma crítica incisiva à “mercantilização generalizada”, ela tem de inventar uma resposta política “à altura” do que o regime normativo dominante tem de inédito. Na medida em que este último implica o definhamento irreversível da democracia liberal, a esquerda não pode contentar-se em defender a democracia liberal, como tende a fazer. Não que ela não deva mais defender as liberdades públicas, mas deve evitar fazê-lo em nome dessa democracia, por exemplo, opondo “autoritarismo neoliberal” e “democracia liberal”. Para citar Wendy Brown:
defender a democracia liberal em termos liberais é não só sacrificar uma visão de esquerda, mas é também, por esse sacrifício, desacreditar a esquerda, reduzindo-a tacitamente a nada mais do que uma objeção permanente ao regime estabelecido: um partido de reclamações, ao invés de um partido com visão política, social e econômica alternativa.1
Por essa mesma razão, não poderíamos retomar a crítica marxista da “democracia formal”, porque seria ignorar que o esgotamento da democracia liberal priva essa crítica de qualquer fundamento: a governamentalidade neoliberal não é democrática na forma e antidemocrática nos fatos; ela simplesmente não é mais democrática, nem mesmo no sentido formal, mas nem por isso identifica-se com um exercício ditatorial ou autoritário do poder. Ela é ademocrática. A cisão entre o “cidadão” e o “burguês” é coisa do passado, assim como o apelo a uma reunificação do homem com ele próprio. Ainda pela mesma razão, a esquerda não pode propor-se a “dar novo fôlego a sistemas decadentes”, amparando a combalida democracia representativa com as escoras bambas da “democracia participativa”2. Também não pode estacionar numa linha de recuo que consiste em opor “liberalismo político” e “liberalismo econômico”: tal posição equivaleria a desconhecer que as próprias bases do liberalismo “puramente político” foram minadas por um neoliberalismo que é tudo, menos “puramente econômico”. De modo mais amplo, todo o espaço ocupado por aquilo que se convencionava chamar “social-democracia” é direta e radicalmente contestado, já que essa denominação devia seu sentido à possibilidade de estender a democracia política mediante o reconhecimento de direitos sociais que definem certa cidadania social, como complemento e reforço da cidadania política clássica.
A esse respeito, devemos dizer a que ponto certo léxico contribui para obscurecer as coisas. Não há e não poderia haver “social-liberalismo”, simplesmente porque o neoliberalismo, sendo uma racionalidade global que invade todas as dimensões da existência humana, veda qualquer possibilidade de um prolongamento de si mesmo no plano social. Portanto, é enganadora a analogia que sugere que o “social-liberalismo” é para o neoliberalismo o que a “social-democracia” foi para democracia política. Por outro lado, o que existe realmente é um neoliberalismo de esquerda que não tem mais nada a ver com a social-democracia ou com a democracia política liberal3. Na verdade, o que o prefixo “social” dissimula mal é a equação sumária pela qual o liberalismo é abusivamente identificado com o laissez-faire econômico. O mesmo pode ser dito da etiqueta de “ultraliberalismo”, distribuída generosamente por grande parte da esquerda – mais generosamente ainda, aliás, porque ela se sente tentada a aproximar-se vergonhosamente da ortodoxia neoliberal ambiente.4 Também nesse caso, devemos recordar que o neoliberalismo não se confunde com o todo-mercado, de modo que não há sentido algum em designá-lo como “ultraliberalismo” para dar a entender que existiria um liberalismo “respeitável”, que não renunciaria aos instrumentos de intervenção de Estado. Nunca é demais repetir: Hayek não é um “ultraliberal”, mas um “neoliberal” partidário de um Estado forte, como muitos outros neoliberais.5 Quanto ao libertarismo, quer defenda o Estado mínimo, quer exija a abolição do Estado, ele não é um “ultraliberalismo”, mas um outro liberalismo, cuja relação com o neoliberalismo não pode ser reduzida a uma simples diferença de grau.
A única pergunta, na realidade, que vale a pena fazer é se a esquerda pode opor uma governamentalidade alternativa à governamentalidade neoliberal. Ao final de sua aula de 31 de janeiro de 1979 sobre o Nascimento da biopolítica, Foucault se pergunta se existiu algum dia algo como uma “governamentalidade socialista autônoma”. Sua resposta é inequívoca: sempre faltou tal governamentalidade. O que a experiência histórica revela é que o socialismo sempre esteve “associado” a outras governamentalidades. Assim, pôde associar-se a uma governamentalidade “liberal” ou ainda a uma governamentalidade “administrativa”. Daí a questão: o que seria uma governamentalidade intrinsecamente socialista? O que Foucault afirma é que essa governamentalidade é inencontrável no socialismo e em seus textos. E, como não se pode encontrá-la, “é preciso inventá-la”.6
Para compreender a necessidade dessa invenção, devemos retornar um breve instante à própria ideia de “governo”. Segundo Foucault, governar consiste em “dispor as coisas”, estando entendido que “coisas” não são as coisas por oposição aos homens, mas todos os “intricamentos entre os homens e as coisas”.7 De certo modo, portanto, a ideia de governamentalidade une a ideia do governo dos homens à ideia da administração das coisas, ao passo que o paradigma da soberania faz prevalecer a relação direta do soberano com esses homens que são sujeitos dele.8
Essa correlação entre um governo dos homens preocupado em não contrariar a natureza das coisas e uma administração das coisas que se vale da liberdade dos homens é que vai dar um impulso decisivo à reflexão sobre a arte de governar, permitindo que ela se liberte do antigo quadro jurídico da soberania. Porque, no interior desse quadro, a primazia da lei não faz mais do que refletir a relação direta da vontade do soberano com a vontade dos súditos, esta última sempre suspeita de tentar desobedecer e sempre chamada ao seu dever de obedecer. Assim, todas as tentativas para refundar a teoria da soberania sobre novas bases estavam fadadas a conservar essa primazia, ou até mesmo a acentuá-la, a ponto de torná-la uma verdadeira sacralização da lei. Isso vale em particular para a tentativa de Jean-Jacques Rousseau: ao mesmo tempo que tenta construir um espaço para a administração das coisas e para o governo dos homens, ele se empenha em subsumir estes últimos ao princípio da soberania. Assim, no verbete “economia política” da Enciclopédia, distingue “economia pública”, ou “governo”, de “autoridade suprema”, ou “soberania”. O governo, do qual dependem tanto o governo das pessoas quanto a administração dos bens, deve ser estritamente subordinado ao soberano, que é o único a deter o poder de fazer as leis. Daí o problema que, segundo ele, é para a política o que o problema da “quadratura do círculo” é para geometria: “pôr a lei acima do homem”.9 Há somente uma maneira de fazer isso: “substituir o homem pela lei”.10 O ideal, portanto, seria que as leis políticas adquirissem a mesma inflexibilidade e a mesma imutabilidade das leis da natureza, de modo que seja impossível aos homens desobedecê-las, já que então a dependência em relação às leis se identificaria pura e simplesmente com a dependência em relação às coisas.11 O princípio da soberania da lei, elevado a absoluto por uma espécie de cruzamento do limite, tende a tornar o governo dos homens totalmente supérfluo: na medida em que, nesse caso, governar consiste em assegurar a execução das leis, temos o direito de nos perguntar que tipo de atividade restaria a um governo que não teme mais que as leis sejam violadas. O ideal seria, no fim das contas, que a invencibilidade das leis permitisse aos homens prescindir de qualquer governo.
Alguns se perguntarão, sem dúvida, o que esse reconhecimento-denegação da governamentalidade por parte de Rousseau tem a ver com a necessidade de inventar uma governamentalidade de esquerda. Essa relação é indireta, mas nem por isso é menos real. A esquerda se construiu historicamente em torno da referência ao marxismo. Ora, este último deve a Saint-Simon certa concepção de governo. Em Do socialismo utópico ao socialismo científico (1883), Engels refere-se em termos elogiosos a uma obra de Saint-Simon intitulada L’industrie: “[…] a passagem do governo político dos homens a uma administração das coisas e a uma direção das operações de produção, portanto a ‘abolição do Estado’ acerca da qual se fez tanto barulho ultimamente, encontra-se já claramente enunciada aqui”.12 De fato, foi Saint-Simon que elaborou a distinção fundamental entre governo e administração. Essa distinção coincide com uma verdadeira oposição entre dois tipos de regime: o regime “governamental ou militar”, de um lado, e o “regime administrativo ou industrial”, de outro.13 Nas sociedades pré-industriais, também chamadas sociedade “militares”, a ordem social procede inteiramente do comando, o que explica a predominância do governo: a ação de governar consiste no exercício do poder de comandar outros homens por parte de certos homens e, como tal, é necessariamente arbitrária. Isso não se deve em absoluto à forma do governo (monarquia absoluta ou parlamentarismo), mas à essência dessa ação: a arbitrariedade encontra-se na própria essência de toda vontade e a ação de governar consiste em homens dar ordens a outros homens.14
Nas sociedades industriais modernas, as coisas são muito diferentes. Os cientistas e os industriais é que são investidos das funções de direção, não em razão de sua aptidão para conseguir que os outros obedeçam a sua vontade, isto é, em razão de seu poder, mas unicamente porque sabem mais do que os outros. Nessas condições, não são mais os homens que dirigem os homens, mas é a verdade que fala diretamente pela boca dos cientistas e dos industriais, e é sabido que nada é menos arbitrário do que a verdade. É impossível resistir à verdade, só se pode tender a ela, porque ela não comanda, mas impõe-se por si mesma, fazendo-se reconhecer. Portanto, a coerção governamental está fadada a desaparecer, da mesma forma que a arbitrariedade. Na sociedade industrial, a ação governamental é reduzida ao mínimo e tende a zero, de modo que o governo orientado pela verdade é o governo que governa o mínimo possível e tende à sua própria supressão. O ideal saint-simoniano é precisamente o da substituição total do governo baseado na arbitrariedade do comando pela administração baseada no conhecimento da verdade.
Esse ideal, retomado pelo marxismo, pressupõe uma dissociação radical entre a ação dos homens sobre as coisas, ou “administração”, e a ação dos homens sobre os homens, ou “governo”: “Nunca é demais repetir que não há ação útil exercida pelo homem, senão a do homem sobre as coisas. A ação do homem sobre o homem é sempre, em si mesma, prejudicial à espécie, pela dupla destruição de forças que acarreta”.15 Como vemos, essa concepção absolutamente negativa do governo só quer desfazer o nó que a própria ideia de governamentalidade deu entre ação sobre os homens e ação sobre as coisas, reduzindo a ação de governar a coerção e comando.
Como em Rousseau, aqui também a especificidade da arte de governar é escamoteada. Obviamente, Saint-Simon não cochila em atacar Rousseau, que para ele é mais um daqueles “legistas” que submetem a sociedade à arbitrariedade das leis. A seu ver, na nova ordem das coisas “não há mais lugar para a arbitrariedade dos homens, nem mesmo para a arbitrariedade das leis, porque uma e outra somente podem exercer-se no vago que é, por assim dizer, seu elemento natural”.16 É justamente esse “vago” que a verdade da ciência vence, e é por isso que “a ação de governar é nula, ou quase nula, enquanto ‘ação de comandar’”. Portanto, se existe soberania, ela só pode consistir “num princípio derivado da própria natureza das coisas”, e não “numa opinião arbitrária alçada a lei pela massa”.17 Em todo caso, tanto no rousseaunismo como no saint-simonismo, a atividade do governo é subalterna, seja porque a soberania pertence às leis oriundas da vontade, seja porque equivale à própria verdade. No saint-simonismo, o marxismo retomará duas ideias-chave: primeiro, que o governo tem, antes de tudo, uma função de polícia que repousa essencialmente sobre a violência e a coerção; segundo, que o governo regulado pela verdade é aquele que tende a sua própria supressão na administração das coisas. Mas ele entenderá por verdade não mais aquele “princípio imutável derivado da natureza das coisas”, mas a verdade que a história faz advir e que sua racionalidade manifesta. Seja como for, soberania das leis ou administração científica das coisas têm em comum o fato de retirar da ação de governar qualquer justificação. Conduzir os homens não é nem curvá-los sob o jugo inflexível da lei nem fazê-los reconhecer a força de uma verdade. É por nunca ter sabido reconhecer isso que a esquerda esteve sempre condenada a regular-se por governamentalidades emprestadas. É precisamente nisso que a governamentalidade de esquerda ainda está por se inventar.
nova razão destaque
A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal, de Pierre Dardot e Christian Laval, integra a coleção Estado de Sítio, coordenada por Paulo Arantes na Boitempo e já está disponível nas principais livrarias do país, como a Livraria Saraiva, a Livraria da Travessa e a Livraria Cultura.
Os autores estão no Brasil para participar de um ciclo de conferências, seminários e debates de lançamento do livro em São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador. Clique aqui para conferir a agenda completa de Dardot e Laval no Brasil.
NOTAS
1 Wendy Brown, Les habits neufs de la politique mondiale, cit., p. 78.
2 Como sugere Loïc Blondiaux em Le nouvel esprit de la démocratie (Paris, Seuil, 2008), p. 100.
3 Ver capítulo 6 deste volume.
4 Como observam com razão Gérard Desportes e Laurent Mauduit em L’adieu au socialisme (Paris, Grasset, 2002), p. 290. A atitude adotada por Michel Rocard diante da crise financeira é muito esclarecedora nesse sentido: “A crise atual não põe o liberalismo em questão. Em compensação, anuncia o fim do ultraliberalismo, essa escola de pensamento criminosa fundada por Milton Friedman” (entrevista publicada no jornal Le Monde, 2-3 nov. 2008). A “criminalização” da Escola de Chicago apresenta duas vantagens. Em primeiro lugar, permite fingir que não existiu nada entre Adam Smith e Milton Friedman, portanto, permite resumir o neoliberalismo a sua versão friedmaniana! Em segundo lugar, tem a função de acobertar a direita francesa, considerada “ainda muito gaullista” (sic), o que indiretamente diz muito sobre as razões íntimas da impotência da esquerda francesa com respeito a essa direita.
5 Ver capítulo 9 deste volume. Serge Audier não se esforça muito para evitar essa simplificação, fazendo de Friedrich Hayek o autor de uma “nova utopia ultraliberal” para melhor opô-lo ao liberalismo “anticapitalista” de Wilhelm Röpke. Ver Serge Audier, Le Colloque Walter Lippmann. Aux origines du néolibéralisme (Latresne, Le Bord de l’eau, 2008), p. 234.
6 Sobre todo esse desenvolvimento, ver Michel Foucault, Naissance de la biopolitique (Paris, Gallimard/Seuil, 2004), p. 93-5.
7 Idem, Dits et écrits II, cit., p. 643-4.
8 Idem, Sécurité, territoire, population, cit., p. 50.
9 Jean-Jacques Rousseau, “Considérations sur le gouvernement de Pologne”, em Œuvres complètes (Paris, Gallimard, 1995, Coleção La Pléiade), t. III, p. 955.
10 Idem, “Émile”, em Œuvres complètes, cit., t. IV, p. 311.
11 Ibidem.
12 Friedrich Engels, Socialisme utopique et socialisme scientifique (Paris, Éditions Sociales, 1977), p. 99 [ed. bras.: Do socialismo utópico ao socialismo científico, trad. Rubens Eduardo Frias, 2. ed., São Paulo, Centauro, 2005].
13 Saint-Simon diz, em essência, que a espécie humana “está destinada a passar do regime governamental ou militar para o regime administrativo ou industrial”. Citado em Émile Durkheim, Le socialisme (Paris, PUF, 1992, Coleção Quadrige), p. 179.
14 Retomamos aqui a argumentação de Durkheim (ibidem, p. 177-8).
15 Saint-Simon, Écrits politiques et économiques (Paris, Pocket, 2005, Coleção Agora), p. 327.
16 Ibidem, p. 330; grifo nosso.
17 Ibidem.
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