Por Flavio Moura
O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro fala sobre seu livro, elogiado por Lévi-Strauss
Publicar ou perecer, reza a máxima da vida acadêmica. Há
intelectuais que levam a expressão ao pé da letra e priorizam a quantidade de
trabalhos publicados. E há outros, cujos livros são mais raros, que dão
preferência a longos processos de maturação. O antropólogo carioca Eduardo
Viveiros de Castro pertence ao segundo tipo.
Aos 51 anos, ele é um dos mais destacados estudiosos das
sociedades indígenas em atividade no Brasil. Professor no Museu Nacional do Rio
de Janeiro, já pesquisou e lecionou na Universidade Cambridge e na Ecole des
Hautes Etudes en Sciences Sociales, em Paris. Publicou artigos nas mais
renomadas revistas acadêmicas da área e seus textos são leitura obrigatória em
qualquer curso de ciências sociais digno do nome.
Mas só agora o leitor poderá ter acesso a uma amostra
abrangente de sua produção. Lançado há pouco, em edição rigorosa e bem-cuidada,
pela Cosac & Naify, A Inconstância da Alma Selvagem reúne ensaios
publicados durante os últimos 25 anos e indica o sentido de sua trajetória.
No início de outubro, em declaração à revista “Le Nouvel
Observateur”, Claude Lévi-Strauss citou o trabalho de Viveiros de Castro como
exemplo da “reflexão teórica de grande amplitude” que caracteriza a etnologia
produzida no Brasil.
Marcado pela influência do estruturalismo de Claude
Lévi-Strauss e pela filosofia de Gilles Deleuze, Viveiros de Castro confronta
em seus textos a tradição do pensamento do Ocidente com outros sistemas de
sentido na tentativa de contribuir, em suas próprias palavras, para “a criação
de uma linguagem analítica à altura dos mundos indígenas, o que significa dizer
uma linguagem radicada nas linguagens que constituem sinteticamente esses
mundos”.
A cosmologia dos Yawalapíti, grupo indígena da Amazônia que
foi tema de sua tese de mestrado, defendida em 1977, o confronto entre jesuítas
e grupos tupinambá no século XVI e o conceito de sociedade em antropologia são
alguns dos temas abordados no livro. Mas talvez a discussão de maior
visibilidade seja a do “perspectivismo ameríndio”, noção desenvolvida pelo
autor em anos recentes que se tornou o centro das discussões sobre sua obra.
Em linhas gerais, trata-se da ideia de que, para os índios,
os animais se vêem como humanos e, ao mesmo tempo, enxergam os humanos como
animais. Para esses grupos indígenas, o fundo comum entre bichos e homens não
seria a animalidade, como no caso da tradição ocidental, mas a humanidade.
Defendida à luz de um substrato filosófico de alcance vasto, essa ideia obriga
a um reembaralhamento de noções-chave de nossa compreensão, como o par natureza
e cultura, e permite desdobramentos cuja importância a entrevista abaixo,
concedida pelo antropólogo por e-mail, ajuda a compreender.
No trabalho de antropólogos como Darcy Ribeiro e Roberto
DaMatta percebe-se a necessidade de se extrair uma noção de brasilidade. O seu
trabalho examina as sociedades indígenas por um enfoque que não passa pela
questão nacional. Qual seria o seu enfoque e em que medida ele se distancia das
referidas interpretações do Brasil?
Eduardo Viveiros de Castro: O que me interessa não é a
“questão nacional”, ou qualquer “teoria do Brasil”. O que me interessa não é,
tampouco, a “questão indígena”, nome do problema que a existência passada,
presente e futura dos povos indígenas significa para a classe e a etnia
dominantes no país. O que me interessa são as questões indígenas, no plural
-entenda-se, as questões que as culturas indígenas se põem elas próprias e que
as constituem como culturas distintas da cultura dominante.
Digamos então que o que me interessa não são os índios
enquanto parte do Brasil, mas os índios sem mais; para mim, se algo é parte de
algo, é o “Brasil” que é parte do contexto das culturas indígenas, e não o
contrário. Entre as questões indígenas encontra-se, naturalmente, e já lá vão
500 anos, a “questão dos brancos”, ou seja, o problema que o “Brasil” oferece
para os povos indígenas que aqui vivem. Mas o “Brasil” é apenas um desses
problemas práticos e teóricos que se oferecem aos índios, pois os brancos são
apenas mais uma dentre as várias espécies (embora uma espécie particularmente
problemática) de Outros com quem cada sociedade indígena deve se haver: os
animais, os espíritos, os outros povos indígenas…
Uma das construções teóricas mais difundidas do seu trabalho
é a noção de “perspectivismo ameríndio”. Em linhas gerais, o senhor poderia
explicar em que consiste essa ideia?
Viveiros de Castro: “Perspectivismo” foi um rótulo que tomei
emprestado ao vocabulário filosófico moderno para qualificar um aspecto muito
característico de várias, senão todas, as cosmologias ameríndias. Trata-se da
noção de que, em primeiro lugar, o mundo é povoado de muitas espécies de seres
(além dos humanos propriamente ditos) dotados de consciência e de cultura e, em
segundo lugar, de que cada uma dessas espécies vê a si mesma e às demais
espécies de modo bastante singular: cada uma se vê como humana, vendo todas as
demais como não-humanas, isto é, como espécies de animais ou de espíritos.
Assim, por exemplo, as onças se vêem como gente, vendo ainda
vários elementos de seu universo como se consistissem de objetos culturais: o
sangue dos animais que matam é visto pelas onças como cerveja de mandioca etc.
Em contrapartida, as onças não nos vêem, a nós humanos (que naturalmente nos
vemos como humanos), como humanos, mas sim como animais de presa: porcos
selvagens, por exemplo. É por isso que as onças nos atacam e devoram. Quanto
aos porcos selvagens (isto é, aqueles seres que vemos como porcos selvagens),
estes se também se vêem como humanos, vendo, por exemplo, as frutas silvestres
que comem como se fossem plantas cultivadas -mas vêem a nós humanos como se
fôssemos espíritos canibais (pois os caçamos e comemos).
Há vários desdobramentos e implicações desse complexo de
idéias: por exemplo, que a forma corporal de cada espécie é uma roupa ou
invólucro que oculta uma forma interna humanoide; ou, ainda, que os xamãs são
os únicos indivíduos capazes de assumir o ponto de vista de mais de uma espécie
além da sua própria; ou, ainda, que, dada a humanidade reflexiva de cada
espécie, a caça e o consumo de carne animal são empresas metafisicamente
problemáticas, jamais livres de conotações canibais. Tudo isso assenta em um
pressuposto fundamental, o de que o fundo comum da humanidade e da animalidade
não é, como para nós, a animalidade, mas a humanidade.
Os mitos indígenas descrevem uma situação originária onde
todos os seres eram humanos, e a perda (relativa) dessa condição humana pelos
seres que vieram a se tornar os animais de hoje. Ou seja, se para nós os
humanos “foram” apenas animais e se tornaram humanos, para os índios os animais
“foram” humanos e se tornaram animais.
Nós pensamos, é claro, que os humanos fomos animais e
continuamos a sê-lo, por baixo da “roupa” sublimadora da civilização; os
índios, em troca, pensam que os animais, tendo sido humanos como nós, continuam
a sê-lo, por baixo de sua roupa animal. Por isso, a interação entre humanos
propriamente ditos e as outras espécies animais é, do ponto de vista indígena,
uma relação social, ou seja, uma relação entre sujeitos.
Entre as conseqüências filosóficas mais interessantes dessa
doutrina perspectivista indígena está uma concepção das relações entre
“Natureza” e “Cultura” radicalmente distinta daquela que vigora, em versões
historicamente variáveis, na tradição ocidental, desde o par phusis/nomos da
Grécia antiga ao par nature/société do Iluminismo.
A partir do estudo de casos isolados, qual o procedimento
para se extrair noções como a do perspectivismo? Como fazer para que elas não
ofusquem as diferenças existentes entre as diversas sociedades indígenas?
Viveiros de Castro: A resposta à primeira pergunta é: mas,
ora, o procedimento usual… Ou seja: (1) uma familiaridade prolongada com os
materiais etnográficos; (2) o pressentimento da presença de um complexo de
sentido recorrente; (3) um pouco de indução e de criatividade; (4) a formulação
de um modelo teórico simplificado; (5) sua aplicação dedutiva a casos
diferentes dos que serviram de ponto de partida, com (6) a conseqüente
complexificação do modelo e extensão de sua capacidade descritivo-explicativa.
Em resposta à segunda pergunta, começo por esta observação
de minha colega Marilyn Strathern: “Nós não ‘descobrimos’ similaridades e
diferenças, mas sim as criamos no processo de fazer comparações”. Semelhanças e
diferenças não existem em si; elas são função das questões que o analista se
coloca. Mas elas são também função das relações reais que as sociedades mantêm
entre si.
É preciso não esquecer, em primeiro lugar, que todos os
povos indígenas das Américas descendem, quase certamente, de um contingente
relativamente pequeno de povoadores vindos da Ásia setentrional, há cerca de
uns 20 ou 30 mil anos, o qual permaneceu, até o século XVI, completamente (ou
quase) isolado do resto da humanidade.
Todos os ameríndios compartilham, assim, de um velho fundo
cultural comum, onde se radica, penso eu, o que chamei de perspectivismo. Em
seguida, é preciso recordar que o tecido sociocultural das Américas
pré-colombianas era denso e contínuo: os povos indígenas estavam em interação
constante, intensa e de longo alcance: idéias viajavam, objetos mudavam de mãos
entre pontos muito distantes, as populações se deslocavam em todas as direções.
Em suma, várias forças e processos militavam para a difusão
de certas idéias e práticas. Sem dúvida, esses processos mesmos de contato
acarretavam também movimentos de diferenciação cultural deliberada, pois
distinguir-se dos vizinhos é um reflexo identitário aparentemente intrínseco à
socialidade humana. Mas para distinguirmo-nos dos vizinhos é preciso
conhecê-los e, com isso, acabamos por nos parecer com eles exatamente por causa
e por meio dessa vontade de diferença.
Uma questão delicada que se impõe ao etnólogo é a
contradição entre querer interpretar de dentro de uma cultura a partir de um
ponto de vista e um aparato conceitual externo a ela. Como mediar esse impasse?
Viveiros de Castro: Isso não é nem uma questão delicada, nem
um impasse, mas uma descrição sucinta do que é a etnologia. Só teria a
ressalvar que o etnólogo não acalenta, em geral, qualquer desejo de
“interpretar de dentro” as outras culturas; o que ele pretende é pôr em
relação, produzir uma interferência entre os “pontos de vista” ou “aparatos
conceituais” das culturas pressupostas por sua atividade, a saber, a sua
própria e a (s) outra (s). Entendo que o etnólogo não interpreta nada; ele
relaciona interpretações.
O estudo das sociedades indígenas como contraponto à cultura
do branco ocidental pode levar a uma idealização da cultura estudada, em
detrimento daquela a que pertence o estudioso? Nesse sentido, a noção de
respeito pela alteridade não poderia dar origem a uma inversão de papéis,
levando à ideia de que as organizações culturais indígenas são, a priori, mais
complexas e interessantes?
Viveiros de Castro: A etnologia estuda culturas e sociedades
historicamente particulares, a partir de uma cultura-sociedade tão
historicamente particular como as que estuda, e assim isso que você chama de
“contraponto” é inerente à prática etnológica. Quanto a saber se tal enfoque
leva a uma idealização… Só se for no sentido de que toda atividade de apreensão
intelectual do que quer que seja envolve uma “idealização”, isto é, sua
conversão em idéias.
Mas se isso significa produzir uma imagem indevidamente
positiva da cultura estudada, derivada de uma avaliação tendenciosa das
culturas indígenas, observo apenas que a ideia que você chama de “respeito pela
alteridade” não pressupõe que as culturas indígenas sejam, a priori ou a
posteriori, nem mais nem menos complexas e interessantes do que a cultura
ocidental moderna. E, aliás, por que “em detrimento” da cultura a que pertence
o etnólogo? Essa cultura está indefesa e precisa de campeões? E caberia ao
etnólogo defendê-la?
O que a etnologia pretende fazer é simplesmente alargar o
mundo dos possíveis humanos, mostrando que a tradição cultural européia não
detém o monopólio do pensamento.
Em entrevista à revista “Sexta-Feira”, o senhor afirma:
“Estamos começando a fazer antropologia simétrica, que é antropologizar o
centro, e não apenas a periferia de nossa cultura”. Como deslocar o foco para
temas como ciência, catolicismo e ainda assim preservar a visada antropológica?
Que procedimentos garantem que os estudos não passem para o âmbito da
sociologia ou de outros campos?
Viveiros de Castro: Como preservar a visada antropológica?
Como não passar para o âmbito da sociologia? É só continuar não achando que
aquele que estuda sabe mais que aquele que ele estuda, isto é, que o observador
é mais esperto que o observado…
Isso é uma brincadeira (ou não) com meus colegas sociólogos.
A diferença entre sociologia e antropologia é uma questão complicada, pois
depende de que estilo de sociologia e de antropologia se está falando. Há quem
não veja diferença alguma, contentando-se talvez, apenas, em observar que a
antropologia possui uma visada e uma ambição comparativas mais amplas que a
sociologia, normalmente ocupada com a sociedade do sociólogo ou com sociedades
do mesmo tipo.
Há quem distinga uma da outra sustentando que a antropologia
se caracteriza por estudar as relações sociais com uma “profundidade de campo”
que replica a perspectiva temporal que os agentes têm de si mesmos, isto é, por
ter um enfoque biográfico, centrado no ciclo de vida, em contraste com a
sociologia, que teria um enfoque macro- ou suprabiográfico, e a psicologia, com
seu enfoque micro- ou infrabiográfico.
Outros distinguem antropologia de sociologia afirmando que a
primeira ignora a distinção, característica da sociologia, entre ciências
sociais (ou humanas) e ciências naturais; com isso, a primeira seria uma
ciência humana “total”, interessada igualmente pelos aspectos e condicionantes
biológicos, psicológicos, ecológicos, econômicos e políticos, culturais etc. da
conduta de nossa espécie. Outros, por fim, pensam que a antropologia se
caracteriza pela aspiração de estudar as relações sociais de um ponto de vista
que não seja deliberada e exclusivamente dominado pela experiência e pela
doutrina ocidental das relações sociais. Ela tenta pensar a vida social sem se
apoiar exclusivamente nessa herança cultural.
A antropologia se distinguiria na medida em que ela presta
atenção ao que as outras sociedades têm a dizer sobre as relações sociais, e
não, simplesmente, parte do que a nossa tem a dizer e tenta ver como é que isso
funciona lá. Trata-se, em suma, de tentar dialogar para valer, de tomar as
outras culturas não como objetos da nossa teoria das relações sociais, mas como
possíveis interlocutores de uma teoria mais geral das relações sociais. Estou
entre os que pensam assim; para mim, se há alguma diferença entre antropologia
e sociologia, seria essa: o objeto do discurso da primeira tende a estar no
mesmo plano epistemológico que o sujeito desse discurso.
Na explicação que o senhor propõe para a forma de
conhecimento do xamanismo ameríndio, encontramos uma oposição entre o ideal de
conhecimento favorecido pela modernidade ocidental, que se caracterizaria pelo
esforço de “objetivação” do objeto, e o procedimento oposto, adotado pelos
xamãs, em que se privilegiaria um processo de “subjetivação” do objeto. Neste
último caso, a ideia de “subjetivação” não constitui um obstáculo à
possibilidade de descrição do conhecimento? De que forma ele pode ser
transmitido?
Viveiros de Castro: Xamanismo não se aprende na escola. A
transmissão do conhecimento tradicional não é discursiva ou
analítico-demonstrativa: aprende-se, nesse contexto, como se aprende a andar de
bicicleta ou a tocar um instrumento, não como se aprende um teorema matemático
ou uma doutrina religiosa. E por que isso que chamei de “subjetivação” seria
empecilho à transmissão do conhecimento? Afinal, não dispomos, nós, de um rico
acervo de conhecimento sobre as intenções e motivações de nossos semelhantes,
conhecimento esse que depende de uma “teoria prática do sujeito” culturalmente
determinada?
É tal acervo que mobilizamos quando raciocinamos, por
exemplo, politicamente -algo que fazemos em contextos bem mais numerosos que
aqueles que se costumam chamar “políticos”. Tudo que eu disse foi que o ideal
epistemológico indígena está mais próximo do que pressupomos quando fazemos
política do que do ideal objetivista pressuposto quando fazemos, por exemplo,
física.
“É sujeito quem tem alma, e tem alma quem é capaz de um
ponto de vista.” Como essa afirmação se relaciona com o fato de que diversos
povos indígenas não reconhecem outros povos, brancos ou indígenas, como humanos
ou iguais? Que papel desempenha essa figura -a do estrangeiro- no intercâmbio
entre os pontos de vista humano e animal? Na essência, ele também compartilha
da “humanidade original e comum”?
Viveiros de Castro: Por um lado, de fato, muitos povos
indígenas não “reconhecem outros povos como humanos ou iguais” (o que não é
exatamente a mesma coisa) ou, antes, parecem não fazê-lo. Por outro lado, é
como você disse: grosso modo, os estrangeiros ou inimigos compartilham
integralmente do fundo original comum dos seres, que é a humanidade.
Como conciliar essas duas afirmações? Observando que o grupo
em posição de sujeito e o grupo outro, estrangeiro, podem, no pensamento
indígena, ser ambos perfeitamente humanos -mas eles não podem ser humanos ao
mesmo tempo. Como a posição de humanidade viaja com a posição de sujeito, será
humano apenas aquele em posição de sujeito. O que não impede, muito pelo
contrário, que o Outro seja concebido como humano –mas, aí, sou eu que não sou
mais humano.
Do ponto de vista do Outro, é ele o humano (ele é o “Eu”),
não eu (que para ele sou um mero “Ele”). Como se vê, isso é muito diferente de
qualquer “racismo”. Os estrangeiros e inimigos encontram-se situados ao lado
dos animais, dos mortos e dos espíritos: são todos figuras da alteridade subjetiva.
Mas isso não impede que os estrangeiros e inimigos possam (e mesmo devam) ser
assimilados ao grupo do sujeito e/ou que o sujeito se transforme em animal,
estrangeiro, branco, morto ou inimigo. O que está em jogo é a posição de
sujeito, não a condição de humano.
No terceiro capítulo, o senhor analisa a relação entre
jesuítas e grupos Tupinambá do século XVI valendo-se de textos que podem ser
considerados literários. Do ponto de vista antropológico, como o senhor
avaliaria as apropriações literárias da figura do índio, principalmente no
indianismo romântico e na “antropofagia” do modernismo de 22?
Viveiros de Castro: Quanto ao indianismo e à antropofagia
modernista, tenho simpatia por ambos, especialmente pela segunda. Oswald de
Andrade mostrou muitas vezes uma notável capacidade de apreensão do que
importava, digamos assim, em e para a cultura dos povos indígenas
quinhentistas, tal como registrada na literatura dos cronistas e missionários.
“Só me interessa o que não é meu”… Esse mote do “antropófago” oswaldiano é a
expressão jocosa de um princípio metafísico fundamental da sociedade Tupinambá:
a idéia de que a constituição do Eu exige a passagem pela posição de Outro.
Lançado recentemente, o livro Trevas no Eldorado, de Patrick
Tierney, provocou polêmica ao afirmar que pesquisadores comandados pelo
antropólogo Napoleon Chagnon e pelo geneticista James Neel, ao estudar os
Ianomâmi da Venezuela nas décadas de 60 e 70, cometeram abusos sexuais,
envolveram-se com criminosos, disseminaram doenças e, pior de tudo, inocularam
substâncias radioativas nos índios para testar a taxa de mutação genética de um
povo “puro”. O senhor acompanhou esse debate? Acredita que as denúncias de
Tierney sejam procedentes?
Viveiros de Castro: Acompanhei o debate. A denúncia
principal é, ao que tudo indica, improcedente; mas isso não inocenta os
implicados, que foram responsáveis por uma quantidade de impropriedades éticas
e políticas, algumas delas podendo ser classificadas de violências simbólicas,
quando não físicas. Tenho, além disso, especial repugnância pelas teorias
eugenistas de James Neel e pelas cretinices pseudo-darwinistas de N. Chagnon.
Entre os estudiosos das ciências humanas, os antropólogos me
parecem menos expostos nos meios de comunicação de massa do que intelectuais de
outras áreas. O senhor concorda com a afirmação? Como o senhor avalia o papel
do antropólogo no debate intelectual brasileiro?
Viveiros de Castro: Não sei se concordo. Afinal, Darcy
Ribeiro, por exemplo, fez um bocado de barulho. E consta que Gilberto Freyre
era antropólogo, também. Quanto ao papel do antropólogo no debate intelectual
brasileiro -brasileiro em que sentido? Intelectual em que sentido? Debate em
que sentido?
Se estivermos falando dos debates entre intelectuais
brasileiros sobre o que é o “brasileiro”, isto é, sobre a essência e o destino
manifesto do “Brasil”, deve-se reconhecer que os antropólogos em geral, depois
dos já citados Darcy Ribeiro e Gilberto Freyre, têm freqüentado pouco as
páginas dos suplementos culturais -se por “debate intelectual” entendermos o
que se publica nesses suplementos. Não sei se a culpa é dos antropólogos ou dos
suplementos, e não tenho certeza se essa pouca freqüência é um defeito ou uma
virtude.
No que diz respeito aos etnólogos -nome convencional para os
antropólogos que estudam sociedades indígenas-, sua pequena “freqüentação” das
páginas e telas da mídia se deve, creio, à ignorância e descaso verdadeiramente
assombrosos, manifestos pela maioria da intelectualidade (baixa, média e alta)
do país, relativamente aos povos indígenas que aqui vivem.
A culpa, aqui, certamente não é dos etnólogos: sua menor
exposição na mídia é conseqüência, não causa, dessa ignorância. A impressão que
tenho é que o “Brasil” não quer saber de índio, e sempre morreu de medo de ser
associado, “lá fora”, a esse personagem, que deveria ter sumido do mapa há
muito tempo e virado uma pitoresca e inofensiva figura do folclore nacional.
Mas os índios continuam aí, e vão continuar. E, como vemos, eles começam a ser
admitidos no Brasil oficial-mediático, agora que foram legitimados na
metrópole. A Amazônia precisou passar pela Europa para se tornar visível do
litoral do Brasil. Antes assim.
http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/1417,1.shl
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