Samizdat
Desde a mudança para o novo apartamento, aqueles passos
vinham lhe martelando a cabeça. Pesados, firmes, marciais, passos de quem
nenhuma consideração nutria pelo vizinho de baixo. E o morador sob aqueles pés
que pisavam com tamanha voracidade era ela, viúva, inválida, prisioneira de uma
cadeira de rodas, clamando por sossego no apagar de sua existência, sossego
quebrado pelos maus modos do morador do 802.
Menos de uma semana convivendo forçosamente com aqueles pés
de pedra e pouco sobrara da curta paciência de Dona Ondina. Bastava o morador
do 802 chegar em casa e o tormento se iniciava. Passos, a qualquer hora do dia.
Uns secos, denunciando os pés descalços do vizinho em contato com o assoalho -
Dona Ondina tinha a certeza pela natureza dos sons que o chão acima de sua
cabeça era forrado por tacos - outros, agudos, quando a criatura portava
sapatos. "Maldito! Se ao menos tivesse um piso para amenizar o
trote", lamentava.
Certa noite, despertada pelo andar paquidérmico do vizinho,
Dona Ondina, abandonou sua cama e embarcou na cadeira de rodas rumo ao
interfone. Reclamou com o sonolento porteiro do comportamento anti-social do
morador do 802 e pediu providências. Minutos depois, o empregado, agora
desperto, certo assombro modulando a voz, informou à importunada velhinha que o
"Seu Rosalvo" havia demonstrado bastante irritação com a abordagem
àquela hora da madrugada e, como conseqüência, mandara um recado à reclamante.
— Que tipo de recado, Diderot?
O porteiro, iluminista só no registro de nascimento, ainda
tentou amenizar a situação.
— Com todo o respeito, Dona Ondina, ele mandou a senhora
tomar naquele lugar onde o sol não bate...
O incidente fez que dela germinasse profundo ódio em relação
ao morador do 802. O rude trotar de Rosalvo tornou-se apenas um componente no
manancial de insatisfações que a anciã cultivava por ele. Suas gargalhadas,
visitas, músicas escutadas, barulho da descarga, cheiro das suas frituras de
homem solteiro, tudo era motivo de reclamações. Diderot ainda tentava apaziguar
a contenda porém, Dona Ondina era resoluta: “Até a respiração desse calhorda me
incomoda”, dizia ela ao porteiro da noite.
A solidão de Dona Ondina provocada por sua dificuldade em
locomover-se era, diluída pela visita semanal da faxineira e pela internet. Os
netos, presença bissexta no apartamento, costumavam provocá-la, chamando-a de
“Vovó Internauta”. Ela assentia rejubilada àquelas homeopáticas manifestações
de carinho dos seus enquanto conectava-se em ondas cibernéticas com o mundo que
lhe era privado pela fraqueza das pernas. Cadeira de rodas em frente ao
computador, Dona Ondina surfava na rede,
comprando o que era necessário para sua sobrevivência de mulher que
pouco ia à rua, fazendo amigos virtuais, trocando receitas por e-mails,
vasculhando a vida alheia nas páginas de relacionamentos pipocantes no universo
web.
Foi quando ela chegou, obra do acaso, em curioso endereço
eletrônico intitulado “Despacho.com”. No site a anciã descobriu, num misto de
encantamento e horror, diversos trabalhos de religiões afros para o bem e para
o mal. Numa seção, o internauta poderia enviar
o seu “ebó virtual” para prosperidade, saúde, doença ou morte de algum
desafeto.
Rosalvo estava impossível naquele dia, sapateando nos miolos
de Dona Ondina, cd dos sambas-enredos no último volume. Ela olhou a tela
iluminada à sua frente, encarou o teto como se dali brotasse o barulho
provocado pelo morador do 802, suspirou e pediu perdão a Santa Prisciliana, de
quem era devota.
Selecionou com o mouse o mais perverso dos ebós.
Clicou em “enviar”.
Os dias correram em velocidade banda larga e Dona Ondina
esqueceu por completo Rosalvo, macumbas virtuais e netos ingratos, mergulhando
por inteira em sua invalidez e no passatempo da internet. Em certo momento,
percebeu que há dias nenhum barulho partia do andar de cima. Agora era o
silêncio que a incomodava. Incômodo de mãos dadas com o remorso. Temeu que o
ebó encomendado houvesse surtido efeito e internamente se justificava: “Foi um
momento de desespero, o homem me perturbava o dia inteiro”. Ou ainda: “Não
levei a sério o Despacho ponto com, foi uma brincadeirinha de velha”.
Entrou em pânico ao sentir o cheiro da carne apodrecida
vindo do andar de cima. Imediatamente ligou para a portaria. Aristófanes,
porteiro do dia, atendeu e de pronto foi averiguar. Minutos depois o interfone
soou no apartamento de Dona Ondina:
— Ligue não, Dona. Era um pacote de carne podre que alguém
jogou fora e ficou entalado na porta da lixeira do oitavo andar. Seu Rosalvo
deve estar vivo e gozando a vida por aí.
— E você sabe dele, Aristófanes?
O porteiro do dia, que de gracejador possuía algo além do
nome de batismo, não perdeu a oportunidade de vomitar um gracejo:
— Seu Rosalvo viaja muito. Faz uma semana que eu não vejo
ele. Deve estar queimando a rosca em algum lugar.
— Como?
— Essas coisas, Dona. Tenho até vergonha de falar com a
senhora. Esses negócios estranhos, de homem com homem, a senhora entende?
Dona Ondina entendia, mas não eram os gostos sexuais do
vizinho do 802 o alvo de suas preocupações. Queria o silêncio pairando sobre
sua cabeça e temeu o regresso de Rosalvo, pisando duro, gargalhando alto,
ladrão de sua paz.
— Quem sabe ele se casa, Dona, com um gringo bonitão que
leve ele lá pras estranjas? Copacabana tá cheia deles!
Se casou, não deu notícias. Meses avançaram sem que um único
barulho escapasse do andar de cima. Nem o som de uma chave girando dentro da
fechadura chegava aos ouvidos de Dona Ondina. Arrependida por julgar haver
vitimado Rosalvo com as artes do ciberfeitiço, a anciã acendeu uma vela virtual
e deixou uma oração pela suposta alma no “Santa Prisciliana on line”.
Alívio percorreu seu ser quando foi acordada uma noite pelos
passos de Rosalvo. Por debaixo das cobertas, chegou a sorrir ao reconhecer as
passadas familiares, rítmicas, do vizinho do 802. Ele estava de volta. Nada
acontecera. Certamente, largado pelo namorado estrangeiro que não deveria
existir somente na cabeça maledicente de Aristófanes, Rosalvo retornara. Dona
Ondina reencontraria o sossego de
espírito, roubado pelo silêncio que tanto ansiara. Jurou nunca mais reclamar de
Rosalvo, emitir-lhes pensamentos rancorosos ou botar seu nome em bocas de sapos
de mentira nas páginas da internet.
Tentaria selar a paz com o morador de
cima.
Porém, dias transcorriam e os baques provocados pelos pés de
Rosalvo tornaram-se insuportáveis. Houve momentos em que ele chegou a andar por
horas a fio massacrando os miolos da anciã a qual deixou de lado a trégua e
acionou o porteiro da noite.
— Diderot, avisa para o Seu Rosalvo que ele está me deixando
doida com esse barulho na minha cabeça.
— Como assim, Dona Ondina?
— Os passos, Diderot, desse cavalo batizado do Rosalvo.
Percebeu uma sensação de constrangimento do outro lado da
linha.
— Dona Ondina, Seu Rosalvo morreu. O corpo foi encontrado
semana passada lá na estrada das Paineiras. Desovaram o coitado...
— Tem alguém no apartamento?
— Não, os parentes dele vêm amanhã para tirar a mobília.
Dona Ondina negou-se a consultar um psiquiatra. Os filhos,
agora mais presentes, tentaram de todas as formar dissuadi-la da decisão, mas
ela manteve-se firme. Era o finado vizinho que estava lá, sapateando sobre sua
cabeça como forma de vingança por ela ter encomendado sua morte através das
forças ocultas. E ela, pecadora, teria que permanecer ali até o final dos seus
dias purgando a sua maldade com um semelhante. “Deixe de besteira, mãe” dizia
um filho. “Se ouvem a senhora falando deste modo, acabam acreditando e te
denunciam”, dizia o outro. “Vocês não o percebem porque ele é esperto. Fica
quietinho quando tem mais alguém em casa. Ele só que me atormentar, e com
justiça”. Os filhos desistiram. Que a mãe ficasse com suas loucuras.
Dona Ondina passou a pesquisar em sites sobre fenômenos
mediúnicos e descobriu que o modo mais fácil de se comunicar com aquele tipo de
espírito seria através das pancadas que ele emitia.
Logi que as batidas no teto voltaram, ela perguntou com
firmeza:
— É você que se manifesta, Rosalvo? Se for você, bata duas
vezes.
Três batidas secas.
Repetiu a pergunta diversas vezes. Sempre as mesmas três
pancadas em negativa.
Intrigada, ela catou caneta e papel para em seguida
pergunta:
— Pode então soletrar seu nome através de um número de
batidas correspondente a cada letra do alfabeto? Um batida para a letra
"A", duas para "B" e assim por diante? Se concordar, bata
uma vez.
Uma batida.
— Então, vamos ao trabalho.
Gastou a tarde inteira conversando com o morto pelo método
das pancadas. Descobriu chamar-se Ângelo e que vivera naquele apartamento 30
anos atrás. Permanecera no imóvel sempre assustando àqueles que se aventurassem
nele morar, porém, estava cansado dessa vida de fantasma batucador de tetos.
Antes, tentara fazer o mesmo com ela, Ondina, mas ficara decepcionado com a
confusão que a velhinha fizera entre suas batidas e os passos de Rosalvo,
realmente barulhentos. Estava mesmo surpreso por ela imaginar ser ele o
espírito de Rosalvo. Tranqüilizou a anciã afirmando que o morador do 802 não
fora vítima dele, nem tão pouco dos seus ebós à distância. Rosalvo morrera por
obra de um assaltante especializado em seduzir homens para roubá-los.
"Reagiu, o pobre coitado".
Aperfeiçoaram o método de comunicação, passando das batidas,
alvo das reclamações do vizinhos, para a escrita no computador. Dona Ondina
digitava e Ângelo respondia logo abaixo, guiando o cursor como por encantamento.
Dona Ondina viveu seus últimos anos assim, em colóquio
diário com o espírito batedor. Soube noticias do outro lado, inclusive de
parentes. Ângelo revelou-se um ótimo correspondente do além. Guardou segredo
até o fim. Ninguém acreditaria mesmo...
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