terça-feira, 19 de agosto de 2014

Entrevista com professor Nicolau Sevcenko

"No Orfeu Extático e no Literatura como missão as décadas de 1910 e 1920, como você diz, a grande metrópole une uma origem avassaladora, mas também uma matriz de uma nova vitalidade emancipadora. Como você mostra a partir dos escritos de Lima Barreto, do Euclides da Cunha, do Blaise Cendrars. Entretanto, ao que parece, na década de 30, no mundo inteiro houve uma volta conservadora, e que essas manifestações foram solapadas ou foram deixadas de lado. Você acha que a ascensão do nazi-fascismo, na década de 1930, no entre guerras e a Segunda Guerra Mundial, toda essa matriz criativa que existia na década de 1920, mesmo os movimentos do anarco-sindicalismo, etc., elas foram solapadas e que uma nova ordem surgiu?

Nicolau: Você está pondo em xeque a década de 30 como se fosse um movimento de reação, de recuo no processo de exploração das possibilidades de uma cultura democrática, aberta, eu concordo com você quanto aos anos 30, mas eu puxaria para os anos 20, porque se nos anos 30 fica mais do que patente pela cristalização do nazi-fascismo, é preciso lembrar que a gestação do nazi-fascismo é dos anos 20. Então, o que acontece não é algo limitado aos anos 20, 30, eu diria que é um fenômeno dos pós-guerra. E se a gente considerar que o pós-guerra não é apenas o pós-guerra, mas é também o pós-revolução russa, veremos que a revolução russa é parte da grande crise da primeira guerra. Se você coloca tudo isso junto, o que você tem nos pós-guerra, já é a polarização de um mundo que põe em confronto forças totalitárias pró-soviéticas e nazi-fascistas, e isso provoca um processo de militarização e de intolerância que se difunde em escala mundial. A consequência geral é a difusão de um pensamento conservador nacionalista, a militarização das sociedades, a intolerância e a exclusão em massa de grupos, culturas e valores estigmatizados. É esse o elemento novo na cena brasileira. Todos nós fomos educados para achar que o elemento novo na sociedade brasileira fosse o modernismo, não, esse é que é o elemento novo na sociedade brasileira, e é com esse elemento novo que o modernismo está em sintonia e esse elemento que vai se cristalizar com o Varguismo e a tendência autoritária no Brasil, ao alinhamento do Brasil com esses modelos autoritários de nível internacional. Portanto, é um fenômeno transnacional cada vez mais, é um fenômeno do capitalismo do pós-guerra e embora tenha havido uma efervescência de movimentos culturais que vinham do pré-guerra, particularmente as culturas derivadas do anarquismo, como o cubismo, o dadaísmo, o surrealismo, a essa altura já eram minoritárias a partir da cultura dominante do orfismo, do construtivismo e da arte politicamente alinhada. Nesse sentido, a cultura dominante no fim do pós-guerra até a Segunda Guerra Mundial é uma cultura fortemente conservadora, reacionária, opressiva, intolerante, excludente e articulada numa linguagem racista. Em qualquer parte do mundo que você for, incluindo os Estados Unidos. Então, embora eu tenha concentrado meus estudos nos anos 20, queria projetar essa percepção de que se trata de todo um momento histórico de longa duração, que inclusive ultrapassa a situação de guerra. É só pensar no pós-segunda guerra e no macarthismo e na Guerra Fria e você vê essa estrutura sobrevivendo com diferentes feições, com diferentes linguagens, com diferentes imagens e representações, mas basicamente esse mesmo quadro de valores polarizados e de intolerância por toda parte. No fundo é a sociedade em que eu me reconheço, eu nasci no meio disso, para meu desgosto. E eu sendo parte de uma minoria, por si só alguém que já estava numa posição frágil, vulnerável. Enquadrado nesse conjunto me senti particularmente massacrado. Eu fiz a escola sobre a ditadura militar, a escola era uma espécie de instituição correcional que impunha valores comportamentais, patrióticos e uma disposição a introjetar uma voz de comando militar, a ser passivo, a aceitar ordens. Nesse sentido não tive uma educação, eu tive uma anti-educação. Meu processo de educação foi uma luta para me deseducar daquilo que me foi introjetado desde a infância. Acho que, infelizmente, já estamos avançados no século XXI e de alguma forma, ainda, queda de muro ou não queda de muro, a gente ainda vive um clima que é um desdobramento dessa fonte profundamente nociva, anti-humanista, anti-social, anti-democrática do primeiro pós-guerra que foi sendo reiterado por sucessivas crises e tendo seus momentos de maior e menor compressão, mas basicamente essa é a atmosfera em que o mundo submergiu por conta da polarização ideológica."

Entrevista com professor Nicolau Sevcenko
www.pontourbe.net

Ponto Urbe - A Revista Digital do Núcleo de Pesquisa Urbana(NAU) da USP

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