sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Cap. III - Representar

"Com suas voltas e reviravoltas, as aventuras de Dom Quixote traçam o limite: nelas terminam os jogos antigos da semelhança e dos signos; nelas já se travam novas relações. Dom Quixote não é o homem da extravagância, mas antes o peregrino meticuloso que se detém diante de todas as marcas da similitude. Ele é o herói do Mesmo. Assim como de sua estrita província, não chega a afastar-se da planície familiar que se estende em torno do Análogo. Percorre-a indefinidamente, sem transpor jamais as fronteiras nítidas da diferença, nem alcançar o coração da identidade. Ora, ele próprio é semelhante a signos. Longo grafismo magro como uma letra, acaba de escapar diretamente da fresta dos livros. Seu ser inteiro é só linguagem, texto, folhas impressas, história já transcrita. É feito de palavras entrecruzadas; é ESCRITA ERRANTE no mundo em meio à semelhança das coisas. Não porém inteiramente: pois, em sua realidade de pobre fidalgo, só pode tornar-se cavaleiro, escutando de longe a epopéia secular que formula a Lei. O livro é menos a sua existência que se dever. Deve incessantemente consultá-lo, a fim de saber o que fazer e dizer, e quais signos dar a si próprio e aos outros para mostrar que ele é realmente da mesma natureza que o texto de onde saiu. [...]. Dom Quixote desenha o negativo do mundo do Renascimento; a escrita cessou de ser a PROSA DO MUNDO; as semelhanças e os signos romperam sua antiga aliança; as similitudes decepcionam, conduzem à visão e ao delírio.As coisas permanecem obstinadamente na sua identidade irônica: não são mais do que o que são; AS PALAVRAS ERRAM AO ACASO, sem conteúdo, sem semelhança para preenchê-las; não marcam mais as coisas; dormem entre as folhas dos livros, no meio da poeira."


(Início do Cap. III - Representar, do livro As Palavras e as Coisas, de Michel Foucault)

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