quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Versos do testamento




A solidão: é preciso ser muito forte

para amar a solidão; é preciso ter pernas firmes

e uma resistência fora do comum; não se deve arriscar

pegar um resfriado, gripe ou dor de garganta; não se devem temer

assaltantes ou assassinos; há que caminhar

por toda a tarde ou talvez por toda a noite

é preciso saber fazê-lo sem dar-se conta; sentar-se nem pensar;

sobretudo no inverno, com o vento que sopra na grama molhada

e grandes pedras em meio à sujeira úmida e lamacenta;

não existe realmente nenhum conforto, sobre isso não há dúvida,

exceto o de ter pela frente todo um dia e uma noite

sem obrigações ou limites de qualquer espécie.

O sexo é um pretexto. Sejam quais forem os encontros

― e mesmo no inverno, pelas ruas abandonadas ao vento,

ao longo das fileiras de lixo junto aos edifícios distantes,

que são muitos ― eles não passam de momentos da solidão;

mais quente e vivo é o corpo gentil

que exala sêmen e se vai,

mais frio e mortal é o querido deserto ao redor;

é isso o que enche de alegria, como um vento milagroso,

não o sorriso inocente ou a prepotência turva

de quem depois vai embora; ele traz consigo uma juventude

enormemente jovem; e nisso é desumano,

porque não deixa rastros, ou melhor, deixa um único rastro

que é sempre o mesmo em todas as estações.

Um jovem em seus primeiros amores

não é senão a fecundidade do mundo.

É o mundo que chega assim com ele; aparece e desaparece,

como uma forma que muda. Restam intactas todas as coisas,

e você poderia percorrer meia cidade, não voltaria a encontrá-lo;

o ato está cumprido, sua repetição é um rito; pois

a solidão é ainda maior se uma multidão inteira

espera sua vez; cresce de fato o número dos desaparecimentos ―

ir embora é fugir ― e o instante seguinte paira sobre o presente

como um dever; um sacrifício a cumprir como um desejo de morte.

Ao envelhecer, porém, o cansaço começa a se fazer sentir,

sobretudo naquela hora imediatamente após o jantar,

e para você nada mudou; e então por um triz você não grita ou chora;

e isso seria enorme se não fosse mesmo apenas cansaço,

e talvez um pouco de fome. Enorme, porque significaria

que o seu desejo de solidão já não poderia mais ser satisfeito;

e então o que o aguarda, se isto que não se considera solidão

é a verdadeira solidão, aquela que você não pode aceitar?

Não há almoço ou jantar ou satisfação do mundo

que valha uma caminhada sem fim pelas ruas pobres,

onde é preciso ser desgraçado e forte, irmão dos cães.


Pier Paolo Pasolini, em “Trasumanar e organizzar”


Tradução de Cide Piquet e Davi Pessoa

fonte Ricardo Corona

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