sábado, 13 de julho de 2013

Memória de Elefante

"(...) O psiquiatra pensou que toda a gente nesse dia queria separar de um dos últimos presentes que a mulher lhe dera no desejo inútil de melhorar sua aparência de noivo de província congelado numa postura hirta de fotografia de feira: desde a adolescência que trazia consigo, colado à assimetria das feições, o ar postiço e triste dos mortos de família nos álbuns de retratos, de sorrisos diluídos pelo iodo do tempo. Meu amor, falou dentro de sim mesmo apalpando a gravata, sei que isto não alivia nem ajuda mas de nós dois fui eu o que não soube lutar: e vieram-lhe à memória longas noites na praia desfeita dos lençois, a sua língua desenhando devagar contornos de seios iluminados de uma rede de veias pela primeira luz da aurora, o poeta Robert Desnos a agonizar de tifo num campo de prisioneiros alemão murmurando É a minha manhã mais matinal, a voz de John Cage a repetir Every something is an echo of nothing, e a forma como o corpo dela se abria em concha para o receber, vibrando tal as folhas dos cumes dos pinheiros agitados por um vento invisível e tranquilo.

(...) Amo-te tanto que te não sei amar, amo tanto o teu corpo e o que em ti não é o teu corpo que não compreendo porque nos perdemos se a cada passo te encontro, se sempre ao beijar-te beijei mais do que a carne que és feita, se o nosso casamento definhou de mocidade como outros de velhice, se depois de ti a minha solidão incha do teu cheiro, do entusiasmo dos teus projectos e do redondo das tuas nádegas, se sufoco da ternura de que não consigo falar, aqui neste momento, amor, me despeço e te chamo sabendo que não virás e desejando que venhas do mesmo modo que, como diz Molero, um cego espera os olhos que encomendou pelo correio"

 Lobo Antunes

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