domingo, 12 de fevereiro de 2012

Ofício de morrer

eu imagino assim a morte de pavese:

era um quarto de hotel em turim,

decerto um hotel modesto, de uma ou duas

estrelas, se é que havia estrelas.



uma cama de pau, de verniz estalado,

rangendo de encontros fortuitos, um colchão mole e húmido

com a cova no meio, a do costume.

corria o mês de agosto com sua terra escura



encardindo as cortinas. nada ia explodir

naquele mês de agosto àquela hora da tarde

de luz adocicada. e alguém pusera

três rosas de plástico num solitário verde.



vejo como pavese entrou, como pousou a maleta

com indiferença, dobrou alguns papéis

e despiu o casaco (como nos filmes

italianos da época). depois foi aos lavabos



no corredor, ao fundo. talvez tenha pensado

que esta vida é uma mijadela ou que.

voltou ao quarto, havia

uma fétida alma em tudo aquilo.



ele abriu a janela

e pediu a chamada telefónica.

a noite ia caindo sem palavras, memo sem businas

excessivas. encheu um copo de água. e esperou.



quando a campainha tocou, havia muito pouco

a dizer e ele já o tinha dito:

já tinha dito quanto amar nos torna

vulneráveis; e míseros, inermes;



que é precisa humildade, não orgulho;

e parar de escrever;

e que dessa nudez é que morremos.

foi mais ou menos isto – a nossa condição



demasiado humana, a voz humana, a frágil

expressão disso tudo, uma firmeza tensa.

«e até rapariguinhas o fizeram».

tinham nomes obscuros e nenhum



remorso lancinante, ninguém pra falar delas.

a mais temida coisa é a coragem

do que parecia fácil: tudo o que não se disse

carregado num acto de súbitas fronteiras.



foi mais ou menos isto. não sei se ele a seguir

pôs do lado de fora um letreiro

com do not disturb ou coisa assim,

nem se tomou as pastilhas uma a uma, ou se as contou.



não sei se o encontrou uma criada,

se a polícia veio logo, se deixou uma carta

ao seu melhor amigo, se apagou a luz,

nem se pousou ao lado a carteira, o relógio, a esferográfica.



não sei se entrou na morte como quem

traz imagens pungentes na cabeça,

palavras marteladas de desejo, ou como quem friamente

está no avesso do sono e vai calar-se e é justo.



não sei se foi assim, se existe uma outra

verdade imaginável ou vedada. sei que ele tinha

um olhar decidido, alguma instigadora, e quarenta e dois anos,

e sei que nessa altura há já poucas verdades



e nenhuma dimensão biográfica na morte.

já vem nas escrituras. eu prefiro

dizer que ele fechou a porta à chave

e sei que era viril a sua transparência.

Vasco Graça Moura
 - Poesia & Lda.

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