sábado, 21 de maio de 2011

Kafka e o horror neutro

“É um aparelho singular.” Desse modo, um oficial descreve ao visitante a máquina de execuções em Na Colônia Penal, de Franz Kafka. Essa frase inicial está na primeira cena da versão da graphic novel de Sylvain Ricard (roteiro), Maël (desenho) e Albertine Ralenti (cores), álbum agora lançado em português na tradução de Carol Bensimon pelo selo Quadrinhos na Cia.

Trata-se de um trabalho gráfico bastante sofisticado. Preserva o sumo da história de Kafka e a ilustra com desenhos muito expressivos, que ressaltam o absurdo da trama. O comandante, com seus olhos delirantes, é o personagem principal, que tenta explicar ao visitante o funcionamento da máquina e a beleza da administração da justiça que dela advém.

A primeira frase é um emblema. A máquina de tortura é apenas “singular”. Uma proeza técnica, na qual o engenho humano para infligir sofrimento ao seu semelhante é elevado à categoria de arte. Em sua descrição, o aparelho não é terrível, nem desumano, ou qualquer outro termo que expresse juízo de valor. É apenas singular, fruto da genialidade de outro comandante, antecessor deste que narra e se apresenta como guardião de uma tradição. Ao lado jaz, acorrentado, o pobre-diabo que provará da ação da máquina para deleite do comandante e ilustração do visitante. É um soldado raso que dormiu durante seu turno de guarda e reagiu com violência ao relho do seu superior.

A descrição da máquina “singular” é minuciosa. Trata-se de um aparelho munido de agulhas que imprimem a sentença no corpo do prisioneiro, perfurando-o cada vez mais fundo. O processo inteiro dura 12 horas e, nos “bons tempos”, segundo o oficial, era presenciado por toda a população da cidade. Mesmo pelas crianças, que tinham acesso privilegiado às proximidades do cadafalso. Afinal, era um espetáculo e uma lição. A finalidade: fazer com que o condenado, através da dor, compreendesse, em seu corpo, a verdade da sentença e a sabedoria da justiça.

No traço de Maël, a máquina é apresentada em seus detalhes, sem que a vejamos em seu todo, o que a torna ainda mais terrível. Ressaltam as agulhas compridas, as engrenagens, a mordaça que é colocada na boca para que os gritos da vítima não perturbem o público. Soturno, Maël faz jus a uma das características marcantes de Kafka, a de transformar objetos em personagens e personagens em objetos. Relação de intercâmbio entre homens e coisas que faz a genialidade de sua obra, talvez a mais poderosa sobre a desumanização da espécie.

Em seu texto, Kafka usa sua melhor arma ao tratar com fria objetividade uma situação absurda – não por acaso, Ernesto Sábato o chamava de escritor absolutamente realista. O que há de terrível em sua escrita é o contraste entre aquilo que descreve e a maneira como é descrito. Kafka naturaliza o horror e, assim o fazendo, o coloca diante de nós como um terrível espelho.

Sua paródia sinistra da justiça, apresentada em Na Colônia Penal, é esmiuçada passo a passo. Aquele que vai morrer sabe qual a sentença? Não. Sabe que foi condenado? Não. Sabe como foi conduzida a sua defesa? Não, ele não teve oportunidade de se defender. O oficial prossegue: se tivesse sido interrogado, contaria um monte de mentiras, advogados dariam sua interpretação e perderíamos tempo precioso nesse emaranhado de versões. Tudo pode ser mais simples: “O princípio segundo o qual eu sentencio é de que a culpabilidade nunca deixa dúvidas”. O réu é culpado de antemão, como em O Processo.

Em seu ensaio clássico, Kafka – Pró & Contra (Cosac Naify, 2007), Günther Anders fala da “calma sobriedade de Kafka”, referindo-se, justamente, a Na Colônia Penal. O livro de Anders é de 1946, lançado na ressaca da 2.ª Guerra Mundial, quando então o autor pôde aproximar esse absurdo da violência do texto kafkiano e a mistura de civilização e barbárie do 3.º Reich. Nos campos de extermínio, os nazistas construíam para si aposentos sofisticados, com toca-discos, estofados e abajures, separados por meia parede das câmaras de gás. Talvez a imaginação de Kafka não chegasse a esse ponto.

No entanto, ele escreve Na Colônia Penal em 1919, após a débâcle da civilização europeia na 1.ª Guerra. Essa noção do absurdo, que bebe na natureza humana mas também em sua contingência histórica, continua a garantir atualidade aos textos de Kafka. Afinal, como escreve no prefácio o roteirista da HQ, Sylvain Ricard, “Um olhar para a atualidade, para nossas telas de televisão, pode indicar que o homem colocou com frequência a sua inventividade a serviço da destruição do outro e que a fascinação diante da dor é cada vez mais banalizada. …Não há sombra de dúvida de que uma execução pública na Place de la Concorde teria mais sucesso e mais telespectadores que qualquer outra festividade. O que explica como a obra fascinante que é Na Colônia Penal se torna o espelho da sociedade em que vivemos e daquilo que somos.” Quem há de negar?

Luiz Zanin Oricchio – O Estado de S.Paulo



NA COLÔNIA PENAL

Autor: Franz Kafka. Quadrinhos na Cia (56 págs., R$ 56)

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