sábado, 30 de abril de 2011

Primeira Carta de Rainer Maria Rilke




Paris, 17 de fevereiro de 1903

Prezadíssimo Senhor,



Sua carta alcançou-me apenas há poucos dias. Quero agradecer-lhe a grande e

amável confiança. Pouco mais posso fazer. Não posso entrar em considerações

acerca da feição de seus versos, pois sou alheio a toda e qualquer intenção

crítica. Não há nada menos apropriado para tocar numa obra de arte do que

palavras de crítica, que sempre resultam em mal entendidos mais ou menos

felizes. As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis quanto

se nos pretenderia fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é

inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou. Menos

suscetíveis de expressão do que qualquer outra coisa são as obras de arte, -

seres misteriosos cuja vida perdura, ao lado da nossa, efêmera.



Depois de feito este reparo, dir-lhe-ei ainda que seus versos não possuem

feição própria somente acenos discretos e velados de personalidade. É o que

sinto com maior clareza no último poema, "Minha Alma". Aí, algo de peculiar

procura expressão e forma. No belo poema "A Leopardi" talvez uma espécie de

parentesco com esse grande solitário esteja apontando. No entanto, as

poesias nada têm ainda de próprio e de independente, nem mesmo a última, nem

mesmo a dirigida a Leopardi. Sua amável carta que as acompanha não deixou de

me explicar certa insuficiência que senti ao ler seus versos, sem que a

pudesse definir explicitamente. Pergunta se os seus versos são bons.

Pergunta-o a mim, depois de o ter perguntado a outras pessoas. Manda-os a

periódicos, compara-os com outras poesias e inquieta-se quando suas

tentativas são recusadas por um ou outro redator. Pois bem - usando da

licença que me deu de aconselhá-lo - peço-lhe que deixe tudo isso. O senhor

está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste

momento.



Ninguém o pode aconselhar ou ajudar, - ninguém. Não há senão um caminho.

Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever;

examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma;

confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de

tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranqüila de sua noite: "Sou mesmo

forçado a escrever?" Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for

afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples

"sou", então construa a sua vida de acordo com esta necessidade. Sua vida,

até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá tornar-se o sinal e o

testemunho de tal pressão. Aproxime-se então da natureza. Depois procure,

como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde. Não

escreva poesias de amor. Evite de início as formas usuais e demasiado

comuns: são essas as mais difíceis, pois precisa-se de uma força grande e

amadurecida para se produzir algo de pessoal num domínio em que sobram

tradições boas, algumas brilhantes. Eis por que deve fugir dos motivos

gerais para aqueles que a sua própria existência cotidiana lhe oferece;

relate tudo isso com íntima e humilde sinceridade. Utilize, para se

exprimir, as coisas de seu ambiente, as imagens de seus sonhos e os objetos

de suas lembranças. Se a própria existência cotidiana lhe parecer pobre, não

a acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para

extrair as suas riquezas. Para o criador, com efeito, não há pobreza nem

lugar mesquinho e indiferente. Mesmo que se encontrasse numa prisão, cujas

paredes impedissem todos os ruídos do mundo de chegar aos seus ouvidos, não

lhe ficaria sempre sua infância, essa esplêndida e régia riqueza, esse

tesouro de recordações? Volte a atenção para ela. Procure soerguer as

sensações submersas desse longínquo passado: sua personalidade há de

reforçar-se, sua solidão há de alargar-se e transformar- se numa habitação

entre lusco e fusco diante da qual o ruído dos outros passa longe, sem nela

penetrar. Se depois desta volta para dentro, deste ensimesmar-se, brotarem

versos, não mais pensará em perguntar seja a quem for se são bons. Nem tão

pouco tentará interessar as revistas por esses trabalhos, pois há de ver

neles sua querida propriedade natural, um pedaço e uma voz de sua vida. Uma

obra de arte é boa quando nasceu por necessidade. Neste caráter de origem

está o seu critério, - o único existente. Também, meu prezado senhor, não

lhe posso dar outro conselho fora deste: entrar em si e examinar as

profundidades de onde jorra a sua vida; na fonte desta é que encontrará a

resposta à questão de saber se deve criar. Aceite-a tal como se lhe

apresentar à primeira vista sem procurar interpretá-la. Talvez venha

significar que o senhor é chamado a ser um artista. Nesse caso aceite o

destino e carregue-o com seu peso e sua grandeza, sem nunca se preocupar com

recompensa que possa vir de fora. O criador, com efeito, deve ser um mundo

para si mesmo e encontrar tudo em si e nessa natureza a que se aliou. Mas

talvez se dê o caso de, após essa descida em si mesmo e em seu âmago

solitário, ter o senhor de renunciar a se tornar poeta.

(Basta, como já disse, sentir que se poderia viver sem escrever para não

mais se ter o direito de fazê-lo). Mesmo assim, o exame de consciência que

lhe peço não terá sido inútil. Sua vida, a partir desse momento, há de

encontrar caminhos próprios. Que sejam bons, ricos e largos é o que lhe

desejo, muito mais do que lhe posso exprimir.

Que mais lhe devo dizer? Parece-me que tudo foi acentuado segundo convinha.

Afinal de contas, queria apenas sugerir-lhe que se deixasse chegar com

discrição e gravidade ao termo de sua evolução. Nada a poderia perturbar

mais do que olhar para fora e aguardar de fora respostas e perguntas a que

talvez somente seu sentimento mais íntimo possa responder na hora mais

silenciosa.

Foi com alegria que encontrei em sua carta o nome do professor Hoaracek;

guardo por esse amável sábio uma grande

estima e uma gratidão que desafia os anos. Fale-lhe, por favor, neste

sentimento. É bondade dele lembrar-se ainda de mim; e eu sei apreciá-la.



Restituo-lhe ao mesmo tempo os versos que me veio confiar amigavelmente.

Agradeço-lhe mais uma vez a grandeza e a cordialidade de sua confiança.

Procurei por meio desta resposta sincera, feita o melhor que pude, tornar-me

um pouco mais digno dela do que realmente sou, em minha qualidade de

estranho.



Com todo o devotamento e toda a simpatia,



Rainer Maria Rilke



Rainer Maria Rilke

In: Cartas a um jovem poeta

Trad.: Cecília Meireles

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