Obra máxima de Macedonio Fernández antecipa Borges
Seria um absurdo pretender descrever este livro de Macedonio Fernández (1874 – 1952), escritor/pensador argentino tido como o mestre “oculto” da literatura de seu país, com as usuais categorias da análise formal. Se, de qualquer jeito, assumíssemos essa empreitada, deveríamos dizer que o livro está composto de 20 capítulos precedidos de quase 60 textos introdutórios muitos deles com a precisa rubrica de “prólogo”. Assim sendo, quase dois terços do livro constituem o limiar dele. Personagem central: A Eterna, a quem o romance está dedicado. Ainda temos personagens de “fim de capítulo”, personagens “da Ausência” e até candidatos a personagens entre outros “protagonistas” não menos surpreendentes. O enredo(?): as reflexões metafísicas que levantam as ações de personagens que, se sabendo personagens, moram em “O romance”. Caso ainda não hajamos compreendido o teor do texto, atentemos para o incipit: “Com um Final de Morte Acadêmica: apresentação na arte, e na vida, de um uso sábio da Ausência, equivalência voluntária de adoçada morte”.
O que será este Museu? Museu das especulações metafísicas? Museu das experimentações narrativas? Ou o paradoxal Museu do romance, gênero da modernidade?
Estará enganado o leitor se pensa que este livro é produto de uma conscienciosa vanguarda. Antes do que isso é o resultado, segundo sustenta Julio Prieto (um dos leitores contemporâneos de Macedonio), do caráter mais bem excêntrico das vanguardas rio-platenses. De geração muito anterior àquela de Jorge Luis Borges (quem tinha 22 anos quando volta da Europa e reencontra quem fora o velho amigo de seu pai), Macedonio propõe um romance que é menos uma obra pronta que uma grande reflexão, como tantos contos do grande autor argentino, sobre as possibilidades da ficção. “O uso sábio da Ausência” parece ser, entre outros matizes desse conceito nuclear do texto, ausência ou invisibilidade do autor que, no “Prólogo final” intitulado “Ao que queira escrever este romance” oferece a sua “obra” ao público: “Deixo assim dados a teoria perfeita do romance, uma imperfeita peça de execução dele e um perfeito plano de execução”. Essa condição aberta do texto é ressaltada pela compacta mas bela edição da Cosac Naify que, ao engastar os diversos prólogos em curiosas molduras numeradas, colabora mais para um efeito de compilação do que para a organicidade tradicional da ideia de livro. Fica feito assim o convite para aquele “leitor salteado” procurado por Macedonio; um leitor salteado que, na sempre desembocada lógica macedoniana, advém o “leitor seguido” ao se deparar com um texto disperso: “Ao leitor salteado me acolho. Eis que leste todo o meu romance sem saber, te tornaste leitor seguido e descabido ao te contar tudo dispersamente e antes do romance. Comigo, o leitor salteado é o que tem mais chances de ler seguido”.
Na breve mas precisa introdução desta edição brasileira do Museu, Damián Tabarovsky nos lembra que Borges procurou deslocar o talento de seu precursor para a oralidade: “Creio que Macedonio, apesar de seus livros admiráveis, não está na escrita. Acredito que Macedonio estava em seu diálogo”. Contudo, ainda que reconhecendo certa intencional estratégia de ocultação do “mestre”, Jorge Luis Borges não deixa de dizer uma verdade: a figura de autor que Macedonio constrói é aquela de alguém despreocupado pela escrita e indiferente às exigências do mercado editorial. O Museu, escrito ao longo da vida de Macedonio, rotineiramente anunciado e até artesanalmente publicitado com papeizinhos que Macedonio dissimulava esquecer em mesas de café, ganhou uma edição definitiva em 1967, 15 anos depois da morte de seu autor e sob os cuidados de seu filho Adolfo de Obieta.
Significou essa reticência algum tipo de apagamento do projeto de Macedonio? Em absoluto. Pelo contrário, Macedonio, na sua rejeição da literatura como mera mimese de um pretenso mundo “real” entretece a literatura de Borges e antecipa – em seu projeto de romance “desencadernado” – O Jogo da Amarelinha, de Julio Cortázar. Sua pretensão de apagamento autoral chega, aliás, até o fascínio de Ricardo Piglia pelo anonimato, que suporia – tal como acontece em A Cidade Ausente – a escrita viabilizada por uma máquina e permeia, de forma geral, a literatura argentina no que ela tem de gosto por evidenciar que a literatura é feita, basicamente, de literatura.
Se a metafísica está para a filosofia como a poesia para a literatura, a escrita metafísica/poética de Macedonio supõe um enorme desafio para o tradutor. Nesse sentido, Gênese Andrade, a tradutora desta edição do Museu, tem sabido escrutar a sempre enganosa literalidade entre o português e o espanhol com uma tradução em permanente tensão com a singularidade do léxico e escrita macedoniana. Um dado: ler Macedonio em português evoca, por momentos, a escrita de Brás Cubas, seja pelos títulos dos prólogos (”Óbito do autor”, “O autor hesita”), seja por alguns sintomáticos gestos comuns (como, por exemplo, deixar páginas em branco para que sejam preenchidas pelo leitor).
Pablo Gasparini
Fonte : O Estado de São Paulo
PABLO GASPARINI É PROFESSOR DOUTOR DE LITERATURA HISPANO-AMERICANA DA USP E AUTOR DE EL EXILIO PROCAZ: GOMBROWICZ POR LA ARGENTINA (BEATRIZ VITERBO)
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