houve um tempo em que ela pensava ser homem. não sabia ainda das diferenças naturais entre os sexos — apesar dos abusos que sofrera, cria ser a sexualidade uma orientação. e o fato de a mãe vesti-la com aqueles babados e frufrus ridículos, era tão somente para deliciar-se com a humilhação que impunha à filha.
ela vestia uma roupa andrógina por baixo dos vestidos. depois de caminhar os treze quilômetros que separavam a casa da escola, num lugar onde havia um rio — seu divisor metafísico, e a ponte era um largo tronco de baobá — retirava essas máscaras como num ritual, acessórios de cabeça, corpo e membros. então podia contemplar n’água seu verdadeiro eu. sem artifícios.
as outras crianças a rodeavam entre gritos “maria sapatão, sapatão, sapatão, de dia é maria, de noite é joão”. apesar de não compreender as bazófias, não gostava. recolhia-se no fundo da sala, na biblioteca — quase vazia, no banheiro. às vezes se deixava ter com uma ou outra garota que lhe pedia carícias nesses recônditos silenciosos e em penumbra; para em seguida, às luzes da ribalta, ouvir das mesmas garotas, um tanto envergonhadas em gestalt, a repetida música, seu melô.
a mais freqüente delas, fernandè, levava-a até sua casa após às aulas. nadavam juntas a se encharcar lá no fundo. piscina ou chuveiro. olha, é melhor a gente enganar aquela patota lá do colégio, vamos fingir que somos inimigas. ela aceitou. não fazia muita diferença mesmo. fernandè achava que sabia das coisas, e era melhor que continuasse assim. na hora devida, compreenderia que não pode haver segredos de amizade.
*
raspou a cabeça. comeu suas unhas até sangrar. rasgou os vestidos e jogou no rio os acessórios tão inúteis. levou uma boa sova da mãe, mas há muito que não se importava com essas mãos tão rudes.
chamou fernandè para um corredor da escola e a beijou. essa não podia esquivar-se. quando enlaçada, era como um afogamento, um desfalecer de asas. a beleza e a delícia da morte.
o diretor da escola separou-as. fernandè foi pra sala de aula e a outra pra diretoria. pela última vez. estava expulsa. e outra sova.
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ela iria se curar. foi o bispo em pessoa que recomendou a psiquiatra.
os exames em sua cabeça não identificaram qualquer desvio.
sylvie deitou-a. então pensa que é homem? mas não somos todos? li que o homem é universal; quando querem se referir a todas as pessoas falam homem; falam em humanidade, cujo radical é homem.
sylvie se deixou emocionar e ofereceu à paciente o seu sobrenome: champagne.
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agora a garota era uma mulher. entendia que palavras sempre serviram de artifícios ao paternalismo para subjulgar o feminino, de que, afinal, tinham medo. como de todo desconhecido.
compreendeu a única diferença natural entre os sexos. questão de anatomia, e todas demais são construções culturais.
entendeu, inclusive, a música gracejadora. nunca se passou por homem porque em suas entranhas gritavam as vozes de todas as mulheres que eram todas e ela também.
quanto ao “desvio sexual” de sua filha, não se trata de anomalia ou opção, dona lucie. então é o quê?
homoternurismo.
Nina Rizzi – Escritoras Suicidas
Nina Rizzi (1983). Formada em História pela UNESP, em Franca/SP. Mãe da Lavínia. “Sou a catalisação, a junção de todos meus pseudônimos, pseudo-eus, eus perdidos, alter ego… o que chamo de ELLO. ELLO é também uma nova fase. Uma reconceituação de poesia, música e teatro, tudo um elo, ou ello”.
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