quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Walter Benjamin e a tarefa da crítica

Para a posteridade, a enorme produção de Benjamin significou o estabelecimento de um marco no pensamento e na crítica



Olhando retrospectivamente para o século 20, podemos dizer que Walter Benjamin (1892-1940) de fato realizou um de seus projetos pessoais mais arrojados. Como ele formulou em uma carta a seu grande amigo Gershom Scholem, de janeiro de 1930, ele achava que conseguira o objetivo de “ser considerado como o primeiro crítico da literatura alemã”. Este reconhecimento na época era na verdade muito tímido, restrito a um pequeno círculo de leitores especializados. Hoje este círculo cresceu a ponto de podermos com razão falar de um “reconhecimento” de sua posição privilegiada como crítico.



Benjamin estava ciente, como ele escreveu na mesma carta, que para tornar-se este “primeiro crítico” era necessário “recriar a crítica como gênero”. Este gênero encontrava-se então na Alemanha desprezado, não era considerado como sério. No mesmo ano, Benjamin diagnosticava que uma das causas que havia levado a crítica alemã à crise naquela época, era a “ditadura da resenha como forma de pesquisa crítica”. Ele mencionou então, como um contra-modelo do passado, as “Características” dos irmãos Schlegel. Como um dos caminhos para a saída da crise da crítica, ele cobrava dos críticos uma aproximação entre a abordagem filológica e uma autêntica reflexão crítica. Este termo indicava para ele uma reflexão tanto no sentido de uma teoria das formas, como de uma teoria da história.



Sem falsa-modéstia ele escreveu então que se a situação da crítica alemã estava se transformando, isto ocorria em parte devido aos seus enormes esforços. E, de fato, Benjamin então, com 38 anos, já fizera bastante para o aprimoramento da crítica. Ele não apenas publicara dois ensaios de peso sobre a literatura alemã, seu “O conceito de crítica de arte no romantismo alemão” (1919) e o “Origem do drama barroco alemão” (de 1925, publicado em 1928), como compusera uma profunda análise das Afinidades eletivas de Goethe (1922), além de mais de cerca de uma centena de artigos de crítica, sobretudo sobre literatura alemã e francesa. Com o fracasso de seu plano de entrar para a universidade, ele se entregara de corpo e alma a este projeto de crítica. Isto significou para ele uma vida atribulada, com enormes dificuldades econômicas. Para a posteridade, a sua enorme produção, paradoxalmente derivada desta mesma situação precária, significou o estabelecimento de um marco no pensamento e na crítica.



Esta última, em Benjamin, nunca foi limitada à literatura ou às obras de arte consagradas. Ele entendeu em primeiro lugar o conceito de crítica no seu sentido kantiano, de crítica da possibilidade de conhecimento. Neste ponto seu pensamento já se aproxima do dos românticos Schlegel e Novalis que cobravam da filosofia kantiana uma expansão do seu conceito de experiência. Com estes autores ele via na crítica um medium-dereflexão.



Trocando em miúdos, assim como os românticos viam na “romantização” do mundo um projeto de superação das barreiras entre o universo criativo e penetrado de fantasia das artes, e, por outro lado, a vida prosaica cotidiana, do mesmo modo, Benjamin propõe para a crítica um projeto tanto estético quanto político. O ato da crítica era visto por ele como um meio de crítica de todo o sistema cultural e de sua base econômica. A partir de seu encontro com o marxismo de Lukács, isto tornou-se cada vez mais patente em seus ensaios e textos de crítica de arte. Aliás, se ele se identifi cou tão rapidamente com o marxismo de Lukács, foi também porque ambos, este e Benjamin, vinham de uma profunda relação com o romantismo alemão. Mas Benjamin foi mais longe que seus colegas de geração, justamente porque ao invés de “superar” seu romantismo, manteve-se fiel a ele por toda sua vida. Se ele tenta nos anos de 1930 demarcar uma posição contra este seu romantismo, é justamente porque ele não conseguiu superá-lo totalmente.



A crítica de Benjamin era, portanto, antes de mais nada, um ato de reflexão que se desdobrava em cinco níveis, articulando-os. O primeiro nível incluía uma auto-reflexão (ele sempre refletia sobre sua própria atividade de crítico, sobre o local e o papel da crítica na sociedade). Em segundo lugar, destaca-se uma leitura detalhada e uma refl exão sobre a obra criticada (que era sempre analisada não a partir de um modelo a-histórico, mas sim de seu próprio Ideal a priori, nas palavras de Novalis). Em terceiro lugar, encontramos uma refl exão sobre a história da arte e da literatura, na qual Benjamin, dentro de uma forte tradição alemã, desenvolveu muitas vezes (como no livro Sobre o barroco e no seu ensaio sobre o narrador, de 1936) o tema da teoria dos gêneros literários. Em quarto lugar, nota-se sempre uma refl exão crítica sobre a sociedade, ou seja, a crítica foi praticada em Benjamin a partir do seu presente e voltada para ele, sem a ilusão positivista de se poder penetrar no passado “tal como ele aconteceu”. Por fim, e articulando todos os níveis anteriores, devemos destacar a teoria da história de Benjamin com a sua crítica aos modelos da evolução histórica, tanto liberais como marxistas, que acreditavam em um avanço constante e positivo do devir da história. Benjamin opôs a este modelo uma imagem da história como acúmulo de catástrofes.



Contra o positivismo daqueles que pregavam (inocentemente ou não) uma crítica apolítica, Benjamin demonstrou que não existe um campo fora do político. A arte e sua crítica são medium-de-refl exão não apenas do sistema estético, mas, antes, de toda a sociedade. Neste sentido, ele extrapolou programaticamente o âmbito da crítica da literatura e da arte. Sua atividade crítica não pode ser inteiramente compreendida, se não levarmos em conta seus seminais textos críticos dirigidos à questão do poder e do direito (lembremos sobretudo de seu “Crítica da violência, crítica do poder”, de 1921, que infl uenciou Carl Schmitt), assim como a sua crítica do que ele denominou de concepção “burguesa”, ou seja, instrumental, da linguagem (recordemos seu “A tarefa do tradutor”, também de 1921, e do artigo de juventude “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem dos homens”, de 1916). Além disso, Benjamin refl etiu também em vários importantes ensaios críticos sobre questões como a (atualíssima) da coleção e do colecionismo (vejam seus trabalhos sobre Eduard Fuchs, de 1937, assim como seus textos sobre coleção de brinquedos e de livros). Seus escritos voltados para a recordação de sua infância (Crônica berlinense e Infância em Berlim) são profundamente inovadores, na medida em que desconstroem criticamente os modelos da autobiografi a e introduzem uma modalidade da auto-escritura mais fragmentada e voltada para uma “topografi a da memória”.



O fundamental dentro do universo das críticas de Benjamin, quando ele voltava seu potente intelecto para as obras que eram publicadas na sua época (como as de Proust, Kafka, Döblin, Kraus, Brecht etc.), ou para reedições de obras consagradas ou não (de Goethe, Kleist, Hebel etc.) é que ele sempre realizou uma crítica que era, ao mesmo tempo, teoria da literatura. É este talvez o legado mais importante de sua produção crítica: ele mostrou a infecundidade da crítica apenas fi lológica, assim como a limitação da crítica meramente imanente, ou ainda, da crítica biográfi ca. Crítica para ele só existia enquanto capacidade de se articular (delicadamente, ou às vezes, como todo o peso histórico exigido por seu objeto de análise), a imanência da obra com a refl exão histórico-crítica. As mostras mais eloqüentes desta concepção são a introdução “crítico-epistemológica” do seu livro sobre o drama barroco alemão, e as refl exões que acompanham as notas de seu trabalho que fi cou inconcluso sobre as passagens de Paris.



Benjamin escreveu no seu último texto, dedicado à crítica da noção de progresso, que “nunca existiu um documento da cultura que não fosse ao mesmo tempo um [documento] da barbárie”. É interessante ler a tradução do próprio Benjamin dessa famosa passagem das suas teses “Sobre o conceito da História”: Tout cela [l’héritage culturel] ne témoigne [pas] de la culture sans témoigner, en même temps, de la barbarie. Com Benjamin aprendemos que cultura é a partir de meados do século 20 toda ela como que transformada em um documento e, mais ainda, ela passa a ser lida como testemunho da barbárie. Esta noção é essencial, porque com este autor vemos não apenas uma tremenda expansão nos critérios de seleção, como também a afi rmação radical de um modo de interpretar esses documentos. Sua teoria da história e da cultura descortina o passado e suas ruínas, sobre as quais construímos nosso presente, como um único e gigantesco arquivo. Quando se fala de arquivo, não se pode esquecer que a toda inscrição deve-se associar um modo de leitura e de interpretação, de outro modo teríamos um arquivo literalmente morto. O elemento político domina todos os momentos do trabalho no arquivo, da seleção, passando pela conservação e pelo acesso, chegando à leitura dos documentos. A história para Benjamin, como é conhecida, é aproximada do modelo do colecionador e do Lumpensamler, o catador de papéis. O historiador deve acumular os documentos que são como que apresentados diante do tribunal da história. Em Benjamin, a cultura como arquivo e memória, devido ao viés crítico e revolucionário de seu modo de leitura, não deixa a sociedade e sua história se cristalizarem em museus e parques temáticos. É o viés conservador da cultura como mercadoria que o faz, ao qual Benjamin opõe sua visada da cultura como documento e testemunho da barbárie. Seu projeto de historiografi a calcada no colecionismo (que tem por princípio o arrancar de seus objetos do falso contexto para inseri-los dentro de uma nova ordem comandada pelos interesses de cada presente) e, por outro lado, inspirado no trabalho do catador (que se volta para o esquecido e considerado inútil) ainda hoje pode ser comparado a um pólen que guarda uma assombrosa força de germinação.



Márcio Seligmann-Silva

é doutor pela Universidade Livre de Berlim, pós-doutor por Yale e professor de Teoria Literária na UNICAMP. Entre outros, é autor dos livros Ler o livro do mundo e Walter Benjamin: romantismo e crítica poética (Iluminuras, 1999), Adorno (PubliFolha, 2003) e O local da diferença (Editora 34, 2005); traduziu de Walter Benjamin O conceito de crítica de arte no romantismo alemão, Iluminuras, 1993

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