segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Os bárbaros estão chegando

Brasil, Rússia, Índia e China, os BRICs, somam 15% do comércio mundial e entram no jogo. Mas já há reações em favor de um sistema mais seguro, que preserve o peso das grandes potências



Andrew Hurrell – O Estado de São Paulo


O multilateralismo funcionou na maior parte do período pós-1945, porque não era muito multilateral. Centrava-se num grupo central de países desenvolvidos. Excluía o bloco soviético e a ameaça soviética era essencial para sua coesão institucional e para enfrentar o desafio representado pela ascensão econômica do Japão e dos tigres asiáticos.



O Terceiro Mundo tinha um papel marginal. Onde se envolveu, seus interesses eram limitados e predominantemente defensivos (o que se via claramente na participação dos países em desenvolvimento no GATT). Quando ele tentou desafiar a ordem estabelecida, nos anos 70, o desafio foi derrotado.



Tudo isso mudou. O sistema internacional é caracterizado por uma difusão do poder, que inclui potências emergentes e regionais; por uma difusão de preferências com muito mais vozes exigindo serem ouvidas, tanto globalmente quanto internamente, como resultado da globalização e da democratização; e por uma difusão de ideias e valores, com uma retomada das grandes questões da organização social, econômica e política que se supunha já sepultadas com o fim da Guerra Fria e a ascensão do liberalismo.



Há um consenso geral de que os novos poderes regionais e emergentes são atores indispensáveis de qualquer ordem global viável. Mas há pouco acordo quanto à natureza ou aos princípios dessa ordem.



A escala de desafios à governança é gigantesca. Da União Europeia ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear, o multilateralismo e as instituições formais estão em desordem. E a ascensão de novos poderes traz consigo uma heterogeneidade ainda maior de interesses e valores, assim como fortes demandas por status e reconhecimento – os chamados “positional goods” – a respeito dos quais é praticamente impossível chegar a um acordo estável.



Uma reação já visível é a tentativa de voltar a uma ordem mais centrada nas grandes potências. Segundo essa visão, os Estados Unidos reduziriam o tamanho de suas responsabilidades ao negociar uma nova série de barganhas com as atuais potências emergentes. Esse pensamento é aparente na interminável retórica das “parcerias” e na maior proeminência de agrupamentos informais como o G-20. As cadeiras ao redor da mesa de negociações seriam rearrumadas e a mesa, ampliada.



A ordem global iria envolver um mosaico de agrupamentos diferentes e muito do que o diplomata Richard Haass, assessor do governo George Bush, chamou de “multilateralismo bagunçado”. O ministro de Relações Exteriores da Grã-Bretanha, William Hague, falou recentemente de uma maneira semelhante, enfatizando a importância das relações com as potências emergentes e argumentando que a influência depende de redes de Estados com padrões fluidos de lealdades, alianças e conexões.



Novas entidades como os BRICs, os BASICs e o IBSA pertencem, por igual, a esse cenário. Elas representam tentativas de se organizar para ter mais influência. Às vezes refletem um desejo de equilíbrio em relação aos Estados Unidos e uma tentativa de deslegitimar as pretensões ocidentais de ditar a ordem global. Às vezes eles são orientados por uma questão mais específica. Mas eles também se marcam por interesses heterogêneos e muitas vezes conflitantes, e oferecem uma base fraca para um programa de ação.



Apesar de a linguagem das novas parcerias estratégicas estar sempre presente, a realidade e a retórica frequentemente divergem – mesmo no caso muito alardeado da relação Estados Unidos-Índia.



O G-20 é supostamente o principal foro para a cooperação econômica internacional, mas ainda é incerto o que isso inclui – seria um centro de redes técnicas para uma governança da economia global? Um diretório dos principais Estados coordenando e apoiando a ação de instituições formais? Ou uma concertação mais antiquada de potências já estabelecidas e em formação, com eficiência sustentada em hierarquia, exclusão e realização? É essa incerteza a respeito da função do G-20, e não a questão sobre o melhor tamanho ou abrangência, a maior fragilidade do agrupamento.



Essas incertezas refletem o caráter complexo, híbrido e contestado da sociedade internacional contemporânea – uma sociedade que enfrenta uma série de desafios westfalianos (especialmente relacionados à transição de poder e ao surgimento de novas potências); mas que enfrenta esses desafios em um contexto marcado por fortes características pós-westfalianas (tanto em termos das condições materiais da globalização como da mudança do caráter da legitimidade política).



Seriam mais factíveis os movimentos em direção a uma ordem mais centrada nas potências? Quase certamente, não. As grandes potências de hoje parecem incapazes ou relutantes a desempenhar seus papéis tradicionais nesse tipo de ordem, ajudando a resolver o problema de outros povos e definindo seus interesses de maneira ampla, para ganhar algum apoio dos Estados mais fracos. Eles também compartilham uma grande relutância a pensar sobre reforma institucional séria e sobre a reconstrução de instituições multilaterais eficientes. Essa não é uma combinação feliz.



Os problemas de legitimidade são particularmente sérios. Os valores que definem direitos humanos e democracia foram manchados pelos excessos da era Bush; os atrativos do “soft power” do capitalismo de livre-mercado foram enfraquecidos pela crise financeira; e as alegações das instituições ocidentais sobre competência técnica e propriedade intelectual foram abaladas.



Por outro lado, as potências emergentes de hoje se sentem tentadas a ver uma política externa escorada em princípios como algo pertencente a uma era de fraqueza ( caso do não-alinhamento na Índia); ou a enfatizar, corretamente, a hipocrisia e seletividade que faz parte dos apelos ocidentais a valores globais (como exemplo, se tratando de direitos humanos na Índia e no Brasil).



Mas legitimidade é indispensável – tanto para o poder nacional como para a ordem global. E é especialmente importante para um país como o Brasil, cuja influência não pode depender de força coercitiva. Essa é uma das razões pelas quais o multilateralismo continua indispensável.



Um desafio final está relacionado à política doméstica. Isso emerge automaticamente no caso dos Estados Unidos. Mas, neste ponto crítico, algo semelhante pode ser dito a respeito das potências emergentes, grandes e complexas. As restrições domésticas da Índia à mudança climática são tão complicadas quando as registradas nos EUA. Isso é novo? Em termos gerais, não.



Pensemos nas tensões que foram geradas pela rápida mudança econômica no decorrer da ascensão dos Estados Unidos, da Alemanha e do Japão. Mas o que é novo, ou pelo menos difícil de evitar, é o grau pelo qual a substância das relações entre as potências necessariamente envolve uma gama de questões oriundas da estrutura profunda da sociedade doméstica.



A politização da política externa no Brasil indubitavelmente reflete questões que são particulares ao país – como as mudanças ideológicas dentro da América do Sul. Mas o que vemos no Brasil faz parte de uma tendência mais geral.

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