sexta-feira, 30 de abril de 2010

A seita dos trinta

O manuscrito original pode ser consultado na Biblioteca de Leiden; está em latim mas helenismos vários justificam a conjectura de o terem traduzido do grego. Segundo Leisegang, data do século quarto da era cristã. De passagem Gibbon menciona-o numa das notas do capítulo décimo quinto do seu "Decline and Fall". Reza o autor anónimo:



...« A Seita nunca foi numerosa e já são raros os seus prosélitos. Dizimados pelo ferro e pelo fogo, dormem na berma dos caminhos ou nas ruínas que a guerra perdoou, já que vedado lhes é construir habitações. Costumam andar do conhecimento geral; proponho-me agora sua doutrina e s seus hábitos. Discuti com os mestres da Seita, demoradamente, e não consegui convertê-los à Fé do Senhor.



«Atraiu logo a minha atenção a diversidade dos pareceres que têm sobre os mortos. Julgam os mas incultos que os espíritos de quem deixou esta vida se encarregam de os enterrar; outros, que à letra se não agarram, que a repreensão de Jesus: Deixa que os mortos enterrem os seus mortos condena a vaidade pomposa dos nossos ritos fúnebres.



«O conselho de vender o que temos, e dá-lo aos pobres, é rigorosamente acatado por todos; os primeiros beneficiados dão-no a outros, e estes a outros. Assim ficam suficientemente explicadas a inteligência e a nudez que os avizinha, também, do estado paradisíaco. Repetem com fervor estas palavras: Olhai os corvos, que não semeiam nem ceifam; que não têm celeiro nem guarda de celeiro, e Deus alimenta-os. Quanto mais valiosos não sois do que as aves? O texto prescreve a poupança: Se Deus veste a erva que existe hoje no campo, e amanhã é lançada ao forno, quanto mais vós, homens de pouca fé? Não procureis o que comer, o que beber; nem viveis em ansiosa perplexidade.



«O preceito: Quem olha uma mulher, para cobiçá-la, já com ela praticou o adultério no seu coração é um iniludível conselho de pureza. Muitos sectários, porém, afirmam que não existe homem debaixo dos céus isento desse olhar de cobiça deitado a uma mulher, e já todos praticámos, portanto, o adultério.



Como o desejo não é menos culposo do que o acto, podem os justos praticar sem risco o exercício da mais desbragada luxúria.



«A Seita evita as igrejas; os seus doutores pregam ao ar livre, de cima de um outeiro ou de um muro, às vezes de um barco em terra.



«O nome da Seita suscitou bem acesas conjecturas. Pretende uma delas que traduz o número a que os fiéis se reduziram, coisa irrisória mas profética pois a Seita, dada a perversa doutrina que perfilha, está predestinada a morrer. Outra fá-lo derivar da altura da arca, que era de trinta côvados;outra, falseando a astronomia, do número de noites que é a soma de cada mês lunar; outra do baptismo do Salvador; outra dos anos de Adão quando surgiu do pó vermelho. Todas são igualmente falsas. E não menos mentiroso é o catálogo de trinta divindades ou tronos, um deles Abraxas representando com cabeça de galo, braços e torso de homem, com um remate de serpente enroscada.



«Sei a Verdade mas não posso discorrer sobre a Verdade. O inapreciável dom de transmiti-la não me foi concedido. Que outros, mais felizes do que eu, salvem os sectários pela palavra. Pela palavra ou pelo fogo. Mais vale sermos executados do que matar-nos. Por isso vou limitar-me à exposição desta abominável heresia.



«O Verbo fez-se carne para ser homem entre os homens que iriam entregá-lo à cruz, e ser por Ele redimidos. Nasceu do ventre de uma mulher do povo eleito, não só para pregar o amor como sofrer o martírio.



«Era preciso que as coisas fossem inesquecíveis. A morte de um ser humano pelo ferro ou pela cicuta não bastava para ferir a imaginação dos homens até ao fim dos dias.



O Senhor preparou os factos de uma forma patética. Assim se explicam a última ceia, as palavras de Jesus que pressagiam a entrega, o repetido sinal a um dos discípulos, a benção do pão e do vinho, o suor parecido com sangue, as espadas, o beijo que atraiçoa, o Piltos que lava as mãos, a flagelação, o escárnio, os espinhos, a púrpura e o ceptro de caniço, o vinagre com fel, a Cruz no alto de uma colina, a promessa ao bom ladrão, a terra que treme e as trevas.



«A misericórdia divina, à qual tantas graças devo, permitiu-me descobrir a razão autêntica e secreta do nome da Seita. Em Kerioth, onde é verosímil que ela tenha nascido, perdura um conventículo alcunhado dos Trinta Dinheiros. Foi este o primitivo nome, que nos dá a chave. Na tragédia da Cruz - com a devida reverência o escrevo - houve actores voluntários e involuntários, todos imprescindíveis, todos fatais. Foram involuntários os sacerdotes que entregaram os dinheiros de prata, involuntária foi a plebe que escolheu Barrabás, involuntário o procurador da Judeia, involuntários foram os romanos que levantaram a Cruz do Seu martírio e pregaram os cravos e jogaram aos dados. Voluntários só dois: o Redentor e Judas. Este rejeitou as trinta moedas, que eram preço da salvação das almas, e a seguir enforcou-se. Na altura tinha trinta e três anos como o Filho do Homem. A Seita venera-os por igual e absolve os outros.



«Não existe só um culpado; convicto ou não, ninguém há que não seja executor do plano que a Sabedoria traçou. Agora todos partilham a glória.



«A minha mão não resiste a escrever outra coisa abominável. Ao cumprir a idade assinalada, deixam os iniciados que escarneçam deles e os crucifiquem no alto de um monte para seguirem o exemplo dos seus mestres.



Esta criminosa violação do quinto mandamento deve ser reprimida com o rigor sempre exigido pelas leis humanas e divinas. Que as maldições do Firmamento, que o ódio dos anjos»...



Não se encontra o fim do manuscrito.


Conto de Jorge Luís Borges, incluído no livro "O Livro de Areia", Trd. Aníbal Fernandes, Ed. Livro B, Editorial Estampa

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